Por Teresa Aparício - Professora, membro do CEHLA.
Eu não quero amor moleiro
Que está sempre no moinho
Antes quero amor boieiro
Que se encontra no caminho
(Quadra popular)
Até à década de sessenta do século XX, os mercados de gado eram muito concorridos por pessoas sobretudo do meio rural, pois os animais eram indispensáveis na agricultura, na alimentação, ou para melhorar a economia doméstica, magra para a grande maioria.
Os bois puxavam os arados com que se lavrava a terra e os proprietários mais abastados tinham até criados apenas encarregados de lidar com eles - eram os boieiros. Os menos abastados que não tinham posses para comprar estes animais, que ainda eram caros, recorriam ao chamado “lavrador”, homem que tinha uma junta de bois, quase exclusivamente destinada a ir lavrar as pequenas leiras de terra de quem os contratava para esse fim. A remuneração era feita em dinheiro ou em géneros e ainda era mimoseado com um almoço, bastante melhorado nesse dia. Na época das sementeiras, quando era preciso tratar a terra, tinham de lhe “falar” com muita antecedência pois o seu trabalho era então muito requisitado e o “lavrador” não tinha mãos a medir.
As vacas, cabras e ovelhas davam o leite para a alimentação e para fazer os queijos e as últimas ainda forneciam a lã muito utilizada no vestuário, muitas vezes todo confecionado em casa e servia também para encher colchões saudáveis e fofinhos, num tempo em que os de molas ainda não tinham sido inventados. As crias eram abatidas para alguma festa familiar, normalmente casamentos ou então, no tempo certo, eram vendidas nos mercados.
Os cavalos eram comprados apenas pelos agricultores abastados e, quando não havia ainda veículos motorizados, serviam de meio de transporte aos donos e seus familiares. A sua raça e tratamento definiam o estatuto do proprietário, tal como hoje acontece com os automóveis de alta cilindrada.
Os de menos posses tinham um burro, animal mais barato, mais fácil de alimentar e que era indispensável nas pequenas explorações agrícolas.
E havia ainda o porco que fornecia, durante o ano inteiro, a quase totalidade das proteínas e gorduras de origem animal, necessárias na alimentação. Ricos e pobres criavam os seus porquinhos, os últimos criavam apenas um, porque o dinheiro não dava para mais. Tinham- -nos ao pé da porta em pocilgas, onde eram alimentados com restos de comida, hortaliças, frutas, abóboras, farinha, bagaço da azeitona etc. Os vizinhos despicavam para ver quem tinha os porcos mais gordinhos e com a carne mais saborosa, na altura das matanças.
Em janeiro, os mercados eram muito concorridos, porque a seguir às matanças, feitas sempre no tempo frio, pois não havia frigorífico, era preciso comprar outros porquinhos pequenos para engordar durante o ano e estarem bons para matar no Inverno seguinte. Os “bacorinhos” eram escolhidos com todo o cuidado e depois quem era pobre e não possuía carroça para os transportar tinha de os levar presos pelo pé com um cordel, percorrendo assim, por vezes, distâncias de vários quilómetros. Eles não gostavam, guinchavam todo o caminho, até finalmente chegarem à pocilga, que, bem preparadinha e com palha nova, já os esperava.
Antigamente os mercados de gado em Abrantes eram famosos, dada a grande quantidade e variedade de animais que neles se podia negociar. Na primeira metade do século XX, até finais da década de quarenta, havia um mercado mensal, ao domingo, no Alto de Santo António, num grande largo, então térreo, que abarcava todo o terreno onde foi construída a Casa de Saúde e mais tarde a torre artesiana. Na década de cinquenta, passou a quinzenal e deslocou-se para o chamado então Campo da Feira, hoje Largo Io de maio e aí esteve até aos anos sessenta. Depois o mercado continuou, mas o de gado extinguiu-se dado que os animais, com o advento dos tratores, das suiniculturas e de outras formas de criação intensiva, passaram a ter menos procura nos mercados.
Manuel Rosa Serras tem hoje setenta e dois anos e é um homem que conheceu bem os mercados de gado de antigamente. É natural de Água das Casas, freguesia de Fontes e aí residiu até há perto de dez anos atrás, altura em que se mudou para a Chainça.
Aos doze anos, logo após a saída da escola, começou a acompanhar o pai, Guilherme Nunes Serras, que já trabalhava no negócio do gado, sobretudo de burros e mulas. Ia com ele às feiras e mercados e percorriam os dois quilómetros e quilómetros a pé, por todo o Alentejo e Beira Baixa para comprarem e venderem os animais.
A primeira grande viagem que Manuel Serras fez foi para a zona de Beja. À ida foram de comboio, mas no regresso, como já traziam os animais que tinham comprado, vieram a pé, pois não tinham ainda outro meio de transporte. Era Verão, fazia calor e só passados cinco dias chegaram novamente a Água das Casas, cansados e cheios de pó, depois de tão longo percurso.
Antes de comprarem os animais, ainda podiam dormir numa pensão, onde pagavam cinco escudos por noite, mas depois, com estes, tinham de pernoitar ao ar livre, no campo, dormindo em cima do restolho cortado ainda não há muito, nas últimas ceifas. Adormeciam olhando para as estrelas, que quando não havia lua, brilhavam intensamente sobre as suas cabeças, só tapados com alguma manta leve que tinham trazido de casa. Por perto, os animais descansavam também, ou iam comendo o restolho, duplamente útil, pois assim não se preocupavam com a sua alimentação. Estas viagens eram igualmente violentas para os animais, de tal modo que os mais frágeis não aguentavam o cansaço e tinham de os abandonar pelo caminho. Alguns depois morriam, outros eram apanhados e recuperados por pessoas da região.
Muitas vezes, Manuel Serras repetiu viagens deste género, na companhia do pai e de outros negociantes de gado da região. Quando chegavam perto de Abrantes, começavam logo a vender o gado que traziam aos fregueses da zona, ou àqueles que sabiam estar necessitados de um burrito para os ajudar nos trabalhos agrícolas. Só na Chainça, havia, por essa altura, perto de novecentos engenhos de tirar água à nora e eram sobretudo os burros que andavam à volta do poço, com os olhos vendados, para a cabeça não endoidar, fazendo subir e descer os alcatruzes que traziam a água, que depois seguia para os tanques de rega. Havia bons clientes por aqui! E também mesmo na sua terra, em Água das Casas, vendiam alguns, pois também por ali havia bastantes animais de trabalho, de tal modo que a população, quando quiseram alcatroar pela primeira vez a estrada, insurgiu-se contra esse melhoramento, porque os burros ao subirem a encosta, escorregavam no alcatrão e lá tombava para o chão a carga que ia na carroça ou em cima do lombo.
Quanto mais depressa despachassem os animais, melhor, pois em casa, nos palheiros, era preciso alimentá-los, preparar-lhes a cama e isso dava despesa e trabalho. Como não os vendiam todos por perto, tinham de ir com eles procurar compradores muito mais longe, nos mercados de Cernache, Sertã, Torres Novas, Santarém, etc. Levantavam-se então bastante cedo, duas, três da noite, para chegarem logo de manhãzinha, que era quando se fazia mais negócio e poderem, se possível, regressar a casa no mesmo dia.
Nestes mercados, tinham que ter muito cuidado com os roubos, era preciso estar com um olho no burro outro no cigano. Uma vez, na Vidigueira, os ciganos que estavam sempre atentos à menor distração, aproveitaram o tempo de uma pequena conversa com outros negociantes e roubaram-lhes o seu melhor burro, que na altura, aí pelos anos sessenta, valia muito dinheiro, cerca de mil escudos. Ficaram os dois furiosos, mas já não havia nada a fazer, pensaram eles. Desta vez, porém, os ciganos tiveram azar, pois ao procurarem comprador para o animal, foram precisamente bater à porta do anterior dono do burro. Este reconheceu-o e tratou de, sem eles darem por nada, comunicar o sucedido à Guarda Republicana. Esta veio, apreendeu o animal e comunicou ao senhor Guilherme que quando quisesse, já o podia vir recuperar. Ao contrário de muitas outras, esta foi uma história que acabou bem!
Manuel Serras sempre gostou de lidar com os animais, mas era preciso ter cuidado, porque se alguns eram mansos e meigos, outros eram bravos, mordiam e davam coices. Uma vez, quando tinha quinze anos, foi mordido por um burro, que lhe espetou os dentes num braço e mesmo sendo por cima da roupa, deixou-o bastante maltratado. O pai, aflito, ao ver isto, zurziu o animal com uma bengala de junco, mas vendo que isso não era suficiente, atirou sobre ele. Afastaram-se pensando que estava morto, mas ao regressarem daí a pouco para o enterrarem, viram que o animal estava vivo e já a pastar. Morreu, na verdade, mas só passado algum tempo.
Acompanhou o pai até o senhor Guilherme ter cerca de setenta anos, depois como este já estava cansado e não aguentava mais um trabalho tão duro, começou o senhor Manuel Serras a negociar sozinho. Nos anos setenta comprou uma fourgonette onde já podia transportar os animais e a partir daí tudo se tornou mais fácil. Hoje ainda negoceia gado, mas só mulas e cavalos, já não jericos.
Ainda vende um ou outro, para trabalhar por aí em alguma aldeia recôndita, mas isso vai-se tornando cada vez mais raro. Os burros são agora um animal em vias de extinção e o seu incansável trabalho nos campos já não é mais do que uma recordação.
IN: APARÍCIO, Teresa – Profissões e vivências em vias de extinção - o negócio do gado. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 10. Nº 20 (2012), p. 64-68