Anos 30 do séc. XX. Espólio de Jacinto Abreu.
Profissões e Vivências em Vias de Extinção: quando o Tejo era a via rápida para lisboa... barcos e barqueiros.
POR TERESA APARÍCIO - Professora, membro do CEHLA
Ó lua acompanhai-me
Até ao termo de Abrantes
Que eu quero aprender as modas
Que trazem os navegantes
(Quadra popular)
Antes da existência do caminho-de-ferro e dos transportes rodoviários motorizados, os barcos eram o meio mais utilizado para transportar as mercadorias do interior centro do país para a capital e vice-versa e o Tejo a via mais rápida e mais segura, apesar das contingências meteorológicas, que por vezes pregavam as suas partidas.
O porto de Abrantes era antigamente conhecido por Porto das Barças, designação que abrangia, na margem norte, uma faixa junto às Barreiras do Tejo e, na margem sul, uma outra faixa estreita mas profunda, junto ao atual Rossio ao Sul do Tejo, conhecida por porto das Barças de Além, denominação muito antiga que já aparece num documento de finais do século XIV Há notícia de que, na primeira dinastia, Abrantes já era abastecida com produtos transportados nos barcos como o sal, ferro, armas e mantimentos vários, tendo até o rei D. Fernando determinado que os mareantes do Tejo ficassem livres de quaisquer encargos fiscais.
A época dos descobrimentos, sobretudo o século XVI, foi um período áureo para este porto, sendo, na altura, o segundo mais movimentado, logo a seguir a Lisboa, com um total de 180 barcos para o comércio ribeirinho, sendo 100 de transporte e 80 de pesca.
A seguir, durante a ocupação espanhola, foi especialmente Filipe I de Portugal quem mais se interessou pela navegação no Tejo, decidindo mesmo torná-lo navegável até Toledo. Para isso mandou construir canais artificiais, como foi o caso do de Alfanzira, perto de Mouriscas e também desenvolveu os chamados caminhos de sirga, um troço dos quais podemos ainda ver junto à Barca da Amieira, no concelho de Nisa.
Estes foram tempos em que grande parte da população de Abrantes e das suas zonas ribeirinhas vivia direta ou indiretamente de atividades relacionadas com o rio. Além dos mareantes, ou marítimos como também eram conhecidos, havia os calafates, carreteiros, almocreves, etc... O trabalho de carregar e descarregaras mercadorias era bastante duro, pois por vezes os materiais eram muito pesados, como foi o caso de toda a pedra de cantaria que veio pelo Tejo desde Tancos até Abrantes, para a reconstrução das igrejas de S. João e de S. Vicente.
Barcos engalanados para a festa da Sra da Boa Viagem Barreiras do Tejo (ano 50 do séc. XX). Fotografia de Laura Louro.
A seguir ao período filipino, o tráfego no Tejo entrou em declínio, em grande parte devido à instabilidade que a Guerra da Restauração (que durou vinte e oito anos) trouxe ao país, mas depois, embora com menor brilho, continuou nos séculos seguintes, de modo que,
no início do século XX, no porto do Rossio, ainda havia 40 barcos com mais de quarenta toneladas cada. Manteve-se durante a Segunda Grande Guerra, altura em que predominava o negócio da cortiça, mas nos anos que se seguiram foi definhando progressivamente, até que pela década de cinquenta, com o incremento do trânsito ferroviário e sobretudo rodoviário, mais rápido e mais seguro, se extinguiu definitivamente.
Ao longo dos tempos, os produtos transportados foram muitos e variados. Para Lisboa seguiam principalmente cereais, frutas (sobretudo o melão das lezírias ribatejanas), castanhas, vinho, azeite, madeiras, cortiça, lã e palha. Este último produto, que vinha dos campos do Alto Alentejo, era embarcado no porto do Rossio e destinou-se durante muito tempo ao abastecimento das cavalariças reais. A sua importância foi tal que o seu nome ficou associado ao doce regional conhecido por “Palha de Abrantes”, feito à base de fios de ovos, cujo aspeto, na verdade, faz lembrar a palha e que as freiras dos conventos abrantinos tornaram famoso. Mas não só nos doces este produto deixou a sua marca, também a deixou na toponímia. A conhecida Praça Barão da Batalha foi denominada anteriormente Praça da Palha de Baixo e a Praça da Palha de Cima tem hoje o nome de Largo Ramiro Guedes.
Em sentido ascendente vinham sobretudo sal, açúcar, café, especiarias várias, bacalhau, tecidos e mais recentemente os adubos e outros produtos químicos. E numa altura em que os jornais eram raros e eram poucos os que a eles tinham acesso, vinham também com os mareantes as notícias frescas da capital, não só de cariz político, mas também social e cultural, em suma as modas como refere a quadra popular do início.
Constância, a antiga Punhete, era outro porto importante da nossa região. No folheto de divulgação do seu Museu dos Rios, podemos ler uma pequena transcrição da “Descrição da Vila de Punhete ...de 1830” de Veríssimo José de Oliveira:
“Faz esta Vila um grande comércio por mar e terra (...). Efeito o transporte de milhares de moios de milho, de pipas de azeite, de madeira de castanho e pinho, de carvão, de lã e todo o comércio que se faz para a corte é pelo Tejo, com a mais acelerada prontidão e nos tempos em que os ventos servem vão a Lisboa as embarcações e voltam em quatro dias.”
À direita, varino no Rossio ao Sul do Tejo À esquerda, carregamento de cereais (fotografia do catálogo do Museu dos Rios e das Artes Marítimas, de Constância).
Aliada à atividade de transporte de mercadorias estava a da construção de barcos, que revestia aqui na zona de Abrantes (especialmente nas Barreiras do Tejo, Rossio, Barca do Pego e Rio de Moinhos) uma importância significativa, dado o grande número de calafates que aparece nos registos camarários. Nas Barreiras do Tejo residia mesmo uma família cujo nome, Calafate, passou de alcunha para apelido. Os barcos diferiam muito em tamanho e feitio: as barcaças eram mais pequenas e as fragatas e varinos já tinham uma razoável tonelagem. Construídos geralmente com madeira de pinho, as técnicas de construção eram transmitidas, na maior parte das vezes, de pais para filhos.
Em Constância, os estaleiros navais situavam-se a céu aberto, nas praias abrigadas do Tejo e do Zêzere e a atividade decorria mais nos meses de Verão, quando o tempo era para isso mais propício.
Dos muitos marítimos (eram assim denominados os barqueiros que iam até ao estuário do Tejo, também denominado “Mar da Palha”) que viviam na região de Abrantes, presentemente só sei da existência de dois e já na casa dos noventa anos. Viveram nos barcos na sua juventude, mas cedo os abandonaram pois viam que a sua vida ali não tinha futuro, dada a pressão dos transportes rodoviários que se começava a fazer sentir. São eles Jacinto Abreu, cujas memórias já foram publicadas na revista Zahara n° 16 e Armando Ferreira com uma vida que também daria origem a um recheado livro de memórias.
Este último nasceu no dia de Natal de 1922 e só frequentou a escola até à terceira classe, pois, com apenas oito anos, o pai achou que ele já dava jeito para ajudar no barco, fazendo então pequenos recados ou ajudando na cozinha, onde os alimentos eram confecionados em fogareiros a carvão. Como bons barqueiros que eram, um prato muito comum era a caldeirada. Levavam de casa os ingredientes precisos e a água utilizada era a que estava mais à mão, ou seja, a do Tejo, que também servia para beber e como o rio não estava poluído na altura, não consta que alguém tivesse por isso ficado doente, até diziam que tinha propriedades curativas, sobretudo para a pele e para o estômago.
Barcos carregados de cortiça, no Rossio ao Sul do Tejo. Espólio de Jacinto Abreu (AHA)
Com os anos as forças do jovem Armando foram crescendo e com elas foi crescendo também a complexidade das tarefas que lhe eram atribuídas. O barco do pai era um varino movido a velas, ou então a remos quando o tempo era de calmaria. A deslocação em sentido descendente era mais fácil, pois havia a ajuda da corrente, mas no regresso, em contracorrente, o barco tinha frequentemente de ser puxado à vara, tarefa dura que deixava marcas no corpo e na alma. O senhor Armando, mesmo hoje e já passaram mais de setenta anos, ainda conserva calos no peito, resultantes da pressão da vara, quando com ela deslocava a água do rio para impulsionar o movimento do barco.
A viagem para Lisboa demorava dois, três, quatro dias, conforme as condições atmosféricas. O senhor Armando recorda o dia de Natal dos seus dezoito anos, em que passou doze horas a remar, desde a Póvoa de Santa Iria até ao Seixal. Durante a viagem pernoitavam no barco, onde podiam dormir quatro pessoas, duas no beliche da proa e outras duas no beliche da ré.
Por essa altura, década de trinta do século XX, o barco do seu pai levava para Lisboa sobretudo cortiça que vinha do Alto Alentejo, transportada, até aqui, primeiro em carros de bois e depois em camionetas e, no Verão, iam os melões e melancias dos campos do Ribatejo e a palha que na altura ia para a Manutenção Militar, no Poço do Bispo, onde havia um quartel com muitos cavalos. Para cima trazia o sal que era carregado em Alcochete e também adubos e outros produtos químicos que vinham da CUF, no Barreiro.
Quando chegou aos dezanove anos, o jovem Armando teve de procurar outra vida, porque já se ia adivinhando que esta tinha os dias contados. Foi então trabalhar para a concorrência, isto é, foi para camionista, onde continuou com o transporte da cortiça.
Os barqueiros tinham uma vida difícil e muitas vezes o dinheiro escasseava. Nos verões secos, a água do Tejo era pouca o que dificultava a navegação dos barcos de maior envergadura. A madeira e a cortiça eram então transformadas em jangadas, transportando-se assim mais facilmente até Lisboa. Nos invernos rigorosos havia água até demais e os fortes temporais provocavam frequentemente danos nos barcos, mercadorias e até nas pessoas. O senhor Jacinto Abreu conta nas suas “Memórias” um desses episódios.
“Foram cerca de cinco horas de desespero, esperando a todo o momento que o barco tombasse e não mais se endireitasse, o que a suceder dificilmente deixaríamos de morrer afogados dada a distância que nos separava (no estuário do Tejo) tanto da margem norte como da margem sul. (...) enquanto o meu pai olhando a água e o vento nos dava instruções, nós tratávamos de com baldes ir retirando a água que ia entrando pela borda; o dono dos fardos de palha de junco que nos acompanhava, chamava pela mãe, lamentando e amaldiçoando a hora em que se meteu a bordo, chorava copiosamente.”
São momentos de aflição descritos por quem os viveu. Mas tirando estes momentos, quando o Tejo levava muita água, navegava-se melhor e ganhava-se mais dinheiro.
O último marítimo do porto de Abrantes foi Manuel Espanhol e o seu barco, de cerca de sessenta toneladas, foi também o último a ser construído nos estaleiros das Barreiras do Tejo, pelo início dos anos quarenta. Chamava- -se Maria Manuel (Maria, nome da esposa do proprietário e Manuel, nome do próprio).
Dados os perigos que corriam, a religião era uma componente forte na vida dos barqueiros e suas famílias. Pela Primavera ou início do Verão, quando já tinham passado os perigos do Inverno, faziam-se na nossa região várias festas, sempre com uma componente profana e outra religiosa, esta última muito centrada em momentos de ação de graças: nestes tinham um papel importante o pagamento de promessas, por parte dos barqueiros e suas famílias que consistiam, na maior parte das vezes, em sacrifícios físicos (deslocações de joelhos e descalços) e ofertas em dinheiro ou géneros oferecidos em fogaças para depois serem leiloados.
Na nossa região, realizavam-se a festa da Senhora da Guia em Alvega, e as de Nossa Senhora da Boa Viagem em Constância e Barreiras do Tejo. Esta última desapareceu em meados da década de oitenta, mas durante anos realizou-se com bastante brilho. A imagem da Senhora da Boa Viagem esteve durante vários anos em casa de pessoas ligadas aos barcos, porque não havia capela para a acolher, depois, como essas pessoas começaram a escassear foi para a igreja de S. João, mas, no início dos anos quarenta, regressou às Barreiras, por iniciativa do então padre Albano, sendo acolhida com grande entusiasmo pela população local. No Largo do Caroço, onde foi recebida e se celebrou a missa, estava um cartaz com uma quadra, feita pelo artista e poeta abrantino José Paulos, que refletia bem os sentimentos da população local:
Ó Mãe, da Boa Viagem
Que em saudade nos deixaste
Acolhei nossa homenagem
Bem-vinda porque voltaste
A imagem continuou a andar por casa de alguns dos habitantes locais que se predispunham a isso, até que em 1953 foi inaugurada a capela que a teve por padroeira. A procissão fazia-se todos os anos no princípio do Verão, havendo peditório e fogaças para arranjar dinheiro para a construção da capela, que foi feita a expensas do povo. A Senhora ia sempre até ao areal, onde era feita a bênção dos barcos que já a esperavam, todos engalanados com bandeiras de papel de várias cores. Quando desapareceram os barcos de transporte, a cerimónia manteve-se ainda por alguns anos, mas com barcos de pesca, que sobreviveram durante mais tempo.
A festa de Constância atravessou os tempos e conseguiu chegar até nós revitalizada e até bastante valorizada.
Sabe-se que é uma festa antiga, como antiga era a faina dos barqueiros no rio, mas não há registo de quando começou. Dizem alguns que nasceu com a terra.... Sabe-se que em 1878 já tinha lugar, tal como hoje, em segunda-feira de Páscoa e refere o pároco local que “era uma solene e pomposa festividade.” A procissão tinha já na altura quatro paragens e outras tantas bênçãos aos barcos que enchiam o Tejo e o Zêzere. Todos viviam a cerimónia com muita intensidade e até a professora da instrução primária preparou, com as suas alunas, vinte e sete jaculatórias para serem cantadas pelas crianças durante as paragens e na chegada à igreja. Nessas quadras pedia- -se à Virgem para livrar os barqueiros de todos os perigos, como se pode ver nas duas que se seguem, a título de exemplo:
Cercados de tantos p’rigos
Em rude labutação
Mal podemos chegar salvos
Sem a vossa proteção
Geralmente mãe dos homens
Sois particular abrigo
De uma classe sempre exposta
Ao mais iminente p’rigo.
A partir da década de quarenta do século XX, com o declínio do tráfego fluvial, a festa foi perdendo o brilho, mas nunca chegou a morrer por completo. Antigamente era da responsabilidade dos barqueiros e quando estes, um a um, se foram transformando apenas em recordações, passou a ser organizada pela paróquia que se associou à Câmara Municipal, ficando depois integrada nas festas do concelho. Desdobra-se hoje em múltiplas atividades desde a gastronomia, ao folclore, desporto e outras, contudo a parte central da festa continua a ser a procissão e a bênção dos barcos que, engalanados e vindos de várias povoações ribeirinhas do Ribatejo, continuam a encher os rios. É certo que é uma reconstituição já artificial, mas a população de Constância tem feito um grande esforço para manter uma tradição que é também um importante testemunho do património imaterial desta região.
BIBLIOGRAFIA
Abreu, Jacinto, “Memórias de uma vida cheia”, revista Zahara n° 16, novembro de 2010 Candeias Silva, Joaquim, “Abrantes, o antigo porto fluvial”, revista Zahara n° 18, novembro de 2011
Coelho, António Matias, “Festas de Nossa Senhora da Boa Viagem em Constância”, edição da Câmara Municipal de Constância, 1991
AGRADECIMENTO
Agradeço os testemunhos orais de Armando Ferreira de 90 anos, antigo barqueiro, e das senhoras D. Júlia Sousa, de 85 anos e D. Maria Laura Louro, de 86 anos, naturais e residentes em Barreiras do Tejo, que me relataram as suas memórias de infância e juventude relacionadas com este tema.
IN: APARÍCIO, Teresa – Profissões e vivências em vias de extinção: quando o Tejo era a via rápida para Lisboa…barcos e barqueiros. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 12. Nº 23 (2014), p. 17-22