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Por Teresa Aparício - Professora, membro do CEHLA.

A caça e a pesca foram, desde a aurora da humanidade, atividades a que os seres humanos recorreram para conseguirem os meios de subsistência de que necessitavam. Pescar nos rios (por serem mais calmos) era mais fácil do que pescar no mar, pelo que as margens destes, também com terrenos muito férteis, foram locais escolhidos e disputados desde o início da sedentarização. E a inteligência humana, a pouco e pouco, foi descobrindo e aperfeiçoando diferentes artes de pesca.

O Tejo, um dos grandes rios da Ibéria, não foi uma exceção. Desde cedo, começou a atrair populações para as suas margens, que foram aproveitando o peixe e os moluscos que fornecia. São disso exemplo os concheiros de Muge, importantes vestígios pré-históricos, com imensos restos de moluscos ali deixados pelos nossos antepassados, há cerca de oito mil anos.

Estrabão, geógrafo grego, nascido por volta do ano 64 a.C., percorreu a Península Ibérica, deixando-nos algumas das primeiras notícias escritas sobre ela, já referia que “o Tejo além de muito piscoso é muito rico em marisco”.

No que diz respeito à zona ribeirinha de Abrantes, há referências à pesca desde o início da nacionalidade. No foral de 1179, D. Afonso Henriques, ao fixar o valor das portagens, indica que “por uma carga de pescado se pagasse um soldo.” Esta referência no foral é só por si um indicativo da importância da pesca já nessa altura.

Ainda no reinado do nosso primeiro rei, há notícia da existência, no Tejo, de um canal ou caneiro, possivelmente mandado construir por ele próprio e de que fez doação ao Mosteiro do Lorvão “com a condição de cuidarem da sua conservação, ficando nove décimos da pescaria a pertencer ao rei e o restante ao Mosteiro”.

A memória deste caneiro, mandado destruir por Filipe II de Espanha, para facilitar o trânsito dos barcos e do peixe, sobrevive ainda na toponímia local: o chamado Cabeço do Caneiro situa-se na margem esquerda, perto de S. Miguel do Rio Torto, onde o rio mais aperta. Aí devia ter estado o referido caneiro, entre este cabeço e o chamado Outeiro da Forca situado em frente.

Os caneiros eram geralmente propriedade do rei que os podiam doar ou não. Sabe-se que na nossa região, fidalgos, ordens religiosas e até municípios tomaram para si, de forma abusiva a posse de alguns, devido à sua importância para a pescaria, tendo os reis necessidade de, frequentemente, recorrer à sua autoridade régia para os recuperar.

Por sua vez o foral de D. Manuel I, no século XVI, também se refere ao pescado: “De tudo o que se pescar com barco ou rede se pagarão dois dízimos”. A pesca era atividade importante nesta altura, pois também João Brandão, em 1522, nos informa que, no termo de Abrantes, existiam 80 barcos de pesca.

Nas “Memórias Paroquiais” de 1758, os párocos locais respondem com mais ou menos desenvolvimento à pergunta que lhes é feita sobre a pesca no rio que passa próximo. Nas de Alvega é referido: “Produz o Tejo abundância de barbos, sabogas, muges, bordalos que são pescaria de todo o ano. No tempo de Inverno pescam peixe de arribação como sáveis, sabogas e lampreias.”

Nas “Memórias” de Constância, o pároco de forma menos sucinta escreve: “Em todo o ano se criam e pescam peixes assim no Tejo como no Zêzere e alguns de muita grandeza. Eu já comprei um pescado que chamam barbo e tendo a curiosidade de o mandar pesar, não se moveu a 27 arrates que tinha a balança na outra parte, pelo que devia passar da arroba muito além...”

A arte da pesca na região, importante que foi até meado do século XX, tinha como suporte equipamentos indispensáveis ao bom sucesso da mesma, sendo a maior parte deles feitos pelos próprios pescadores. A transmissão das várias técnicas e saberes fazia-se normalmente entre familiares, mas hoje essa cadeia quebrou-se e esses conhecimentos antigos, importante património material e imaterial, está em vias de se perder irremediavelmente.

Para atrair o peixe a sítios estratégicos, foram construídas, nas margens do rio, as chamadas pesqueiras, de que sobrevivem algumas, especialmente junto a Alvega, Ortiga e Mouriscas. São antigas e construídas em diferentes épocas. Muitas já existiam no século XVI e Filipe II incentivou bastante a construção de outras. São formadas por duas partes: o dente, constituído por uma parede (ou rochedo natural) e um outro paredão de alvenaria, construído alguns metros a jusante, perpendicularmente à corrente e com degraus descendo em direção ao rio. Estes dois elementos formam, no intervalo, uma reentrância abrigada chamada revessa. Junto a esta, a água tem um movimento contrário à corrente, o que atrai os peixes para aquele abrigo, ficando assim mais fáceis de capturar. As pesqueiras eram propriedade particular, tinham nome e registo próprio, mas podiam ser pertença de vários indivíduos.

Os barcos mais utilizados eram os chamados picaretos, perfeitamente adaptados ao rio e às diferentes artes de pesca praticadas na região. Todos tinham nome e registo obrigatórios.

As redes (hoje feitas com fio de nylon e compradas a metro) eram antigamente tecidas pelos próprios pescadores, com fio de algodão. Com frequência tinham de ser remendadas, pois o leito do rio, pedregoso e acidentado, danificava-as com facilidade, ficando este trabalho a cargo dos mais idosos, quando já não podiam ir ao rio. Um dos tipos de rede mais utilizado era o chamado tresmalho, formado por três panos sobrepostos, cada um deles com uma malha diferente, adequada a peixes de diferentes tamanhos: o pano central de malha fina era para os peixes pequenos e os outros dois, de malha mais larga, para os peixes maiores.

Além dos tresmalhos havia os salvares, adequados à pesca do sável e os sabogares à da saboga.

As redes eram utilizadas na pesca de arrasto, em que com a ajuda do barco se moviam ao longo do rio, ou então podiam ficar fixas num determinado ponto (muitas vezes nas revessas das pesqueiras) assinalado por boias de cortiça presas na rede.

Havia outras técnicas de pesca, com aparelhos que funcionavam como armadilhas para os peixes. Nesta linha, havia a pesca à varela, com redão e com nassas ou narsas.

A varela é constituída por uma espécie de saco de rede cosido a uma vara dobrada em forma de elipse. Podia armar-se nas pesqueiras (o que se fazia muito na zona da Ortiga) ou nos barcos picaretos.

O redão é também uma espécie de saco, mas com uma boca maior do que a da varela, pois destinava-se a peixes graúdos. Instalava-se na ré dos barcos e a boca do redão abria e fechava com a ajuda de um sarilho, cuja manivela era acionada pelo pescador.

As nassas são constituídas por um objeto bojudo de vime, com boca afunilada, para facilitar a entrada do peixe mas não a sua saída. No fundo têm uma pequena porta de cortiça que se abre para retirar o peixe. No interior, punha-se um isco e depositavam-se em sítios escolhidos do rio, com uma pedra dentro para fazer peso, ficando o local assinalado com uma boia de cortiça. Eram muito utilizadas na captura das enguias.

Também de vime eram feitos cestulhos, que serviam para transportar o peixe e para o conservar. Para este último fim, colocavam- -se fechados dentro de água, com o peixe dentro para o manter vivo e fresco por mais algum tempo.

Até à década de sessenta do século XX, muitos eram os pescadores que faziam da pesca profissão. Depois, quando os velhos foram perdendo as forças, deixaram de ter quem os substituísse. Aos jovens abriram-se-lhes outras perspetivas, enveredaram por caminhos mais suaves e rentáveis e o Tejo foi ficando cada vez mais vazio. Alguns ainda foram ficando, mas passaram a pescar apenas nos tempos livres e muito poucos continuaram a ter a pesca como profissão.

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Vítor Grilo (não é avieiro, embora haja famílias avieiras com este apelido) tem 67 anos e é natural de Mouriscas onde ainda reside. Já não fez da pesca profissão, mas nunca deixou de ir ao rio. Trabalhou como serralheiro civil e na C. P, mas o “bichinho” da pesca entranhou-se cedo dentro dele (desde os treze, catorze anos, iniciado por familiares) e não mais o abandonou.

Pescou com tresmalho, à varela, com redão ou nassa, no seu barco picareto e utilizou também as pesqueiras. Pescava mais durante a noite e recorda ainda uma noite de Inverno em que apanhou um “valente susto”. Era por volta das 22 horas, estava escuro e caía uma chuva miudinha que enregelava os ossos. Estava em cima de uma pesqueira, quando de repente o barco se soltou e foi sendo arrastado pela corrente para o outro lado do rio, ficando ele ali sozinho, rodeado de água por todos os lados. Gritou para que lhe acudissem, até que alguém o ouviu e o veio a ajudar a sair daquela difícil situação.

Além de pescar também fazia barcos picaretos. Já fez vários, uns para si, outros para vender. Dá bastante trabalho, diz-nos. Era preciso arranjar tábuas de pinho bem secas que depois se pregavam umas às outras com pregos zincados (para não enferrujarem) de modo a dar forma ao barco. Alguns tinham uma cobertura na parte da ré, chamada leito, que servia para arrecadar instrumentos ou para o pescador descansar. Depois era preciso calafetá-lo para que a água não entrasse. Com uma cunha de ferro introduzia-se estopa nas juntas das tábuas, de modo a tapar todos os orifícios. Seguidamente era “breiado”, isto é, pintado com breu, uma mistura de pez preto e borra de gás. Tinha de ser aplicada bem quente e era esta mistura que dava ao barco a sua cor negra como as noites de breu de que falavam os antigos.

Hoje, Vítor Grilo já está aposentado, mas cheio de energia, ainda vai ao rio no seu picareto, o “Invejado”, feito por ele próprio. Conhece bem todos os recantos e pesqueiras do Tejo, mas já não as utiliza, para pescar apenas usa o tresmalho, feito já com rede de compra, mas depois montada por si. O rio corre mesmo aos pés da sua habitação, o bote está ali ancorado numa pequena reentrância e ambos continuam a fazer parte da sua vida.

Um pouco mais a montante, na Ortiga, viveu, em tempos, uma grande comunidade de pescadores e de outras profissões de apoio aos mesmos. Ainda hoje la podemos encontrar um cesteiro que fazia os vários objetos de vime utilizados na pesca (agora faz apenas nassas para decoração) e um calafate afamado, Manuel Pires Fontes, que fez inúmeros picaretos. Dos pescadores restam poucos, sendo dois deles os irmãos Ricardo Alves Vermelho, de 40 anos, e José Francisco Alves Vermelho, de 42 anos. Filhos e netos de pescadores resolveram remar contra a maré e continuaram numa profissão, com raízes fundas na sua terra e na sua família. Como a pesca no rio é hoje pouco rentável (não pode competir com a invasão do mercado com peixe congelado), em vez de desistirem e abandonarem a arte como tantos outros, resolveram dar a volta à situação e tornar a sua profissão rentável: investiram num restaurante, onde servem pratos tradicionais confecionados com peixe do rio, pescado por eles. Primeiro em Belver e agora em Mação, podemos encontrar no “Pescador” fataças, bogas, lúcios fritos ou grelhados, acompanhados de açorda de ovas e de salada de almeirão, por vezes caldeirada e no seu tempo sável, saboga e a afamada lampreia. Os peixes de arribação têm agora mais dificuldade em subir o rio, devido à barragem de Belver e ao açude construído em Abrantes. Estes dois pescadores utilizam hoje em dia mais a pesca à trancha (a rede está fixa no rio e eles esperam a chegada do peixe), mas em tempos chegaram a praticar a pesca de arrasto e até com a varela e nassas de vime.

Pelos fins do século XIX, princípios do século XX, começaram a fixar-se nas margens do Tejo, comunidades de pescadores com costumes diferentes - vinham da praia da Vieira de Leiria e por isso eram conhecidos por avieiros. O mar ali era perigoso, sobretudo no Inverno e a pesca rendia pouco pelo que muitos resolveram procurar o Tejo, de águas mais calmas e afamado pela abundância de peixe, sobretudo de sável. Fixaram-se, primeiro junto do estuário e depois foram procurando o seu espaço, cada vez mais a montante. Ciganos do rio, pois viviam mais tempo neste do que em terra firme, inspiraram o escritor Alves Redol a retratar a sua vida, no livro com o mesmo nome.

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Nassas usadas na pesca no rio Tejo.  A da direita é de rede enquanto a da esquerda é fabricada com vime.

A princípio não eram vistos com bons olhos pelos pescadores locais, pela concorrência que lhes faziam e também pelas diferenças que os marcavam. Claro que vestiam como os pescadores da sua terra de origem: as mulheres usavam saia axadrezada, com pregas, blusa cintada, lenço na cabeça também com motivos geométricos e no Inverno xaile de lã cruzado sobre o peito, de modo a deixar-lhes os movimentos livres, mas a defendê-las bem do frio e da humidade das noites no rio; os homens vestiam igualmente como os pescadores do litoral. A princípio, homens e mulheres andavam quase sempre descalços ou calçados apenas com tamancos de base de madeira. Sapatos eram só para os dias de festa.

As habitações, que foram construindo nas margens do Tejo, eram umas barraquinhas de madeira, com telhado de duas águas e assentes sobre estacas (tipo palafitas), para não serem atingidas pelas águas, quando chovia e o rio subia. O espaço entre as estacas era usado como arrecadação para as redes e outros objetos da pesca e era também ali que dormiam as galinhas, criadas livremente nas margens do Tejo.

Os barcos, a que chamavam bateiras, eram pontiagudos na proa e na ré, característica que os distinguia dos botes locais e de que eles não abdicaram, apesar da sua construção se tornar mais difícil. Visto que os barcos eram durante muitas horas a sua casa, colocavam-lhes numa das extremidades um toldo, onde se abrigavam do sol e das intempéries.

As redes mais usadas eram os tresmalhos e as varinas (à maneira da Vieira) que começavam com rede larga e depois ia estreitando, de modo a poderem capturar vários tipos de peixe. Usavam também as redes salvaras para o sável e as sabogares para as sabogas. Não utilizavam as pesqueiras, nem usavam canas, varelas ou redões, apenas, para apanhar as enguias, usavam nassas de rede. Estas eram constituídas por uma espécie de saco de rede, com aros circulares de madeira e aberto no fundo, por onde entravam as enguias. Uma vez estas lá dentro, o saco era fechado, impedindo assim a sua saída. É um objeto bonito mas difícil de executar, pelo que muitas eram trazidas da Avieira, onde havia verdadeiros especialistas no seu fabrico.

Como o dinheiro escasseava, sabiam fazer praticamente tudo aquilo de que precisavam: habitação, vestuário, redes e outros objetos necessários à pesca.

Nos primeiros tempos, os avieiros procuravam para casar raparigas também avieiras, pois a nova família tinha de trabalhar em equipa, para poder superar as dificuldades que a vida lhes ia trazer. Só mais tarde esta situação se alterou e passaram a casar com pessoas da terra e a integrar-se mais nas comunidades locais.

Na zona ribeirinha do concelho de Abrantes, construíram barracas palafitas em Tramagal, Amoreira e no Lopo (margem direita do Tejo um pouco a montante da ponte do caminho de ferro). Presentemente, já todas foram destruídas pelo tempo ou pelos homens, mas ainda estão vivos avieiros que construíram algumas delas, filhos e netos dos que há cerca de cem anos rumaram da Vieira até ao Tejo.

No Cabrito (Rossio ao Sul do Tejo) vive Manuel Fernandes, de 85 anos, com sua mulher, Júlia Tocha, de 79 anos. Foram pescadores na sua juventude, mas já nenhum dos seus cinco filhos fez da pesca profissão.

Os pais de Manuel Fernandes viviam na Vala de Almeirim e mais tarde vieram fixar-se em Tramagal. O pai morreu cedo e foi a mãe, Emília Tocha, que o acabou de criar, bem como aos irmãos. Emília contava que tinha vindo da Vieira com os pais, apenas com dez anos de idade. Estes alugaram uma parelha de mulas, onde transportaram as crianças e os seus parcos haveres para a Vala de Almeirim. Os adultos vieram a pé, dormindo onde calhava. Muitos outros avieiros vieram até ao Tejo no próprio barco, onde transportavam tudo o que tinham.

Quando Manuel pensou em casar, foi buscar Júlia, ainda sua parente afastada, que morava no Lopo e era a mais velha de sete irmãos. Era filha de Manuel Francisco Tocha e de Carolina Tocha, esta natural de Vale de Figueira, onde ainda residiu algum tempo, após o casamento, tendo depois vindo com o marido para o Lopo, onde este já residira. O primeiro pescador avieiro a fixar-se no Lopo fora Luís Pitam, avô paterno de Júlia Tocha.

As crianças começavam cedo a iniciar-se nas artes da pesca e foi por volta dos oito, nove anos que tanto Manuel como Júlia principiaram a trabalhar no barco, pelo que nem um nem outro frequentaram a escola. E jovens, quando namoravam, o tempo era ocupado a fazer redes, sentados um de cada lado da mesma. A vida foi a sua grande mestra e o tempo um bem precioso que náo podia ser desperdiçado, senão com a sobrevivência.

Com 33 anos e com cinco filhos para criar, Manuel Fernandes achou que precisava de arranjar outro modo de vida, onde ganhasse um pouco mais. A década de sessenta estava a começar, os horizontes começaram a alargar- -se e então resolveu deixar de ser pescador a tempo inteiro e foi trabalhar para a construção civil. Mas até essa altura, toda a sua vida fora o Tejo e o peixe, que ele ficou a conhecer como a palma das suas mãos.

O Inverno era uma estação particularmente difícil, embora houvesse abundância de peixe. O Tejo ficava mais perigoso e o frio por vezes enregelava. Como andavam quase sempre descalços, o gelo estalava-lhes debaixo dos pés e nem sequer podiam calçar os tamancos de madeira, por serem muito escorregadios. Até os ramos dos salgueiros vergavam com o peso do gelo!

Ele e a mulher pescavam durante a noite, para logo de manhã irem vender o peixe. Levavam consigo os filhos e como às vezes adormeciam, pregavam a roupa das crianças à sua com um alfinete de dama, para que não caíssem ao rio. Mas apesar destes cuidados, o filho mais velho, quando tinha por volta de dois anos, ia morrendo afogado. Não foi de noite, mas de dia, o menino desequilibrou-se e caiu ao Tejo, mas ele e a mulher ainda conseguiram salvá-lo, agarrando-o pela ponta do bibe, quando já ia a desaparecer na água. Manuel Fernandes recorda que ele próprio, em criança, caiu ao rio cinco vezes.

Apesar das dificuldades, as famílias eram muito unidas. A festa maior era a dos casamentos e era nestes que se reunia a família alargada. Manuel Fernandes ainda se lembra do casamento do seu tio Joaquim, que teve lugar em Almeirim. Tinha então dezassete anos e, curiosamente, a sua descrição assemelha-se bastante à que Alves Redol faz no livro Os Avieiros, no capítulo “A Maria vai casar...”.

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À esquerda, José Tocha e à direita, Manuel Fernandes e Júlia Tocha, todos avieiros

Faziam questão que fosse uma festa animada, tinha que durar três dias e havia sempre comida e bebida em abundância. Os pratos eram sempre de carne, pois de peixe estavam eles fartos, que o comiam todos os dias. Os pais dos noivos criavam um vitelo, um porco ou um borrego, que juntamente com algumas galinhas, constituíam a base das seis refeições obrigatórias. Doces não havia muitos, apenas o arroz doce aparecia. Contratavam uma cozinheira afamada para que os pitéus saíssem a preceito e também um acordeonista que tivesse os dedos ágeis e que não se cansasse facilmente, para animar o baile que decorria em simultâneo com os comes e bebes. Os casamentos eram geralmente no Verão, pois a festa só tinha graça se fosse ao ar livre. Na Vala de Almeirim, onde o tio morava, havia uma aldeia a vieira, com muitas barracas e em frente da sua aplanaram o terreno e fizeram um pequeno terreiro, onde dispuseram as mesas e os bancos para se sentarem. Os numerosos convidados vinham de longe, de barco ou de comboio e durante aqueles dias animados esqueciam as agruras da vida e as dificuldades do quotidiano.

Carne era só para as festas especiais, mas no dia-a-dia havia peixe fresquinho e saboroso, que os avieiros sabiam cozinhar muito bem. Faziam caldeiradas, grelhadas, mas para Manuel Fernandes o prato mais saboroso e ainda hoje muito apreciado pela família é o das migas de peixe. Conta-nos então como é confecionado:

Primeiro amanha-se o peixe que deve ser graúdo e corta-se às postas grossas, mas não se salga. Numa panela com água, põem-se batatas e cebolas às rodelas, alho, um bocadinho de colorau, um ramo de cheiros (salsa, coentros, louro...), um fio de azeite, sal (pouco) e quando tudo isto está meio passado, coloca-se por cima o peixe cru. Depois deste cozido, retira-se e põe-se de lado. Com parte do caldo da panela faz-se uma salmoura com bastante sal e um pouco de vinagre e coloca- -se nesta o peixe, para ganhar gosto, mas não mais de um quarto de hora para não salgar. Entretanto, para uma tigela de barro funda, migam-se bocados de pão e por cima deste deita-se o resto da água da panela, com os ingredientes que estão lá dentro, (batata, cebola, etc.), abafa-se um pouco e depois esmaga-se tudo muito bem. Come-se esta miga acompanhada com o peixe.

Em Tramagal, fomos encontrar José Tocha, irmão mais novo de Manuel Fernandes. Tem 77 anos e veio da Vala de Almeirim com apenas quatro. Estes oito anos que tem a menos que o irmão, marcaram algumas diferenças: já frequentou a escola e não casou com mulher avieira, mas fez sempre da pesca profissão até que as pernas lho permitiram.

Fomos encontrá-lo junto ao rio que todos os dias gosta de visitar e perto está a sua bateira de dois bicos, construída por ele próprio e a única que se encontra no Tejo, ali em Tramagal. Conversando com ele, estava Maria José Grilo, mais nova, talvez da idade dos filhos, mas também ela de família avieira, originária da Chamusca. Nesta localidade, vive uma sua tia, Maria Grila, que com os seus 83 anos, continua ainda a ir à pesca. Apesar de ser então muito jovem, Maria José ainda tem recordações da vida no rio.

José Tocha viveu, quando era novo, numa barraca avieira, na Barca do Tramagal, perto da Lamacheira. Ali vivia também um grupo de ciganos, mas os avieiros, nómadas do rio, davam-se bem com eles.

Dizia a mãe que o filho José nasceu num barco, o que não era invulgar na altura. Lembra-se que ela, já viúva, levava os filhos para o rio e dormiam todos na proa do barco, onde estava o toldo. Para que as crianças não se levantassem e caíssem à água, atava com uma corda os pés dos filhos à sua perna e assim dava logo conta se eles se mexessem. No tempo das sabogas tinham de passar a noite no rio, pois a melhor hora para as pescar era às três da manhã, mas tinham de ir mais cedo para o barulho dos remos do barco não as assustar. Logo de manhãzinha iam para o mercado vender o peixe.

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Barco avieiro

 

O Tejo, embora menos perigoso que o mar, também não era seguro. Certo dia a sua filha Elisa, então com oito anos, andava à pesca com um tio, quando o barco se virou. Agarraram-se aos salgueiros que bordejavam as margens e ali estiveram durante quatro horas, todos molhados, à espera que os fossem lã buscar. O barco foi arrastado pela forte corrente e só foram resgatá-lo perto de Almeirim. Maria José ao ouvir esta história, lembra-se que o avô lhe contara que, um dia, o seu barco virou-se com os filhos todos lá dentro, perto de Vila Franca. Salvaram-se graças à solidariedade das pessoas que ao longe os viram em aflição e os foram ajudar.

Neste contacto constante com o rio, nem sempre calmo, as situações perigosas aconteciam com frequência e era, portanto, necessário que todas as crianças aprendessem a nadar. O processo utilizado era original e muito pouco agradável para elas: no Verão, quando a água apetecia, os miúdos, com sete, oito anos, eram atirados ao rio e tinham de se desenvencilhar sozinhos, nadando pratica- mente por instinto, até atingirem novamente o barco. Entretanto os pais, disfarçadamente, iam observando se a operação decorria com sucesso, ou se era preciso ir ajudá-los.

A água do Tejo, não poluída na altura, servia para beber e para cozinhar. Maria José lembra que faziam uma cova na areia, um pouco acima da linha de água, para onde esta subia, sendo recolhida um pouco mais abaixo, filtrada pela areia e já límpida.

Conta ela também como o peixe era confecionado, mesmo ali à beira da água, sendo muito apreciada a fataça na telha: faziam uma fogueira na areia e colocavam uma fataça (ou outro peixe com tamanho semelhante) temperada com sal e embrulhada em folhas de couve, no meio de duas telhas de canudo, pondo depois estas em cima das brasas. O peixe ia assando lentamente pelo que ficava muito saboroso.

Diz-nos também como se cozinhava o peixe no espeto e como sabia bem comê-lo ali mesmo à beira rio! A saboga (ou outro peixe do género) depois de temperada com sal e golpeada era espetada inteira numa vara de salgueiro, ficando esta com uma das extremidades enterradas na areia. Com o peso, a vara dobrava e tombava perto do lume, mas não sobre este, de modo que, apanhando o calor das brasas, o peixe fosse grelhando lentamente, o que lhe apurava o paladar.

José Tocha, já em jovem, sabia fazer quase tudo o que precisava: a barraca de madeira, as redes e até as bateiras onde pescava. A técnica de construção destas é semelhante à dos picaretos: são construídas também com tábuas de pinho, pregadas com pregos zincados, calafetadas com estopa e depois pintadas com breu. O pincel é que era diferente: arranjava- -se uma cana e colocava-se um rolhão de lã virgem numa das extremidades. Este era introduzido dentro da caldeira do breu a ferver, pintando-se depois rapidamente as tábuas do barco, antes que o líquido arrefecesse. O dinheiro era pouco e os pincéis caros!

Agora já não se constroem barcos nem se fazem petiscos à beira do rio. A partir de meados do século XX, os barcos foram rareando cada vez mais no Tejo. Os barqueiros desapareceram por completo e poucos pescadores restaram. Nada nem ninguém os substituiu e o Tejo e as suas margens, até aí povoados de vida, começaram a ficar cada vez mais sós. As populações ribeirinhas, que já não buscavam no rio a subsistência, passaram a viver de costas viradas para ele. Só alguns velhos ainda o olham com saudade e recordam como era diferente o Tejo na sua juventude. São eles os depositários de muitas recordações e de uma enorme sabedoria que constituem um património importante em vias de se extinguir por completo.

BIBLIOGRAFIA

  • Coelho, António Matias, Os Últimos Avieiros do Tejo, Âncora, 2011
  • Filipe, João Matos, Cultura e artes de pesca tradicional no rio Tejo, O Mirante, 2012
  • Redol, Alves, Os Avieiros, Europa América, 1979

AGRADECIMENTO

Agradeço a colaboração das várias pessoas que me deram informações sobre os pescadores, nomeadamente de Júlia de Sousa Marcos de 85 anos, de Maria Laura Louro, de 85, ambas naturais e residentes em Barreiras do Tejo e de Rosa Barralé, residente em Tramagal. Agradeço também a Maria do Carmo Tocha, que me emprestou a fotografia dos seus pais, os avieiros Manuel Francisco e Carolina Tocha.

IN: APARÍCIO, Teresa – Profissões e vivências em vias de extinção: a pesca e os pescadores na zona ribeirinha de Abrantes. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 12. Nº 24 (2014), p. 29-35