sapateiros

Por Teresa Aparício - Professora, membro do CEHLA

            O calçado percorreu já um extenso caminho ao longo da história humana. Desde que o Homem começou a usar a sua inteligência para enfrentar as agruras do meio ambiente que as peles de alguns animais, resistentes e confortáveis, começaram a ser utilizadas para protegerem os pés do frio e dos escolhos do caminho. Depois, a sua criatividade foi tomando conta desses objetos e foi-os tornando não só confortáveis, mas também bonitos e até reveladores do estatuto social de quem os calçava.

Que esta história é antiga, prova-o os vários instrumentos de pedra encontrados em escavações arqueológicas, que teriam sido utilizados para curtir e trabalhar as peles e que se multiplicaram a partir da domesticação dos animais, há cerca de dez mil anos.

Em pinturas egípcias antigas, já aparecem representadas as diversas fases da preparação das peles, embora só os nobres utilizassem sapatos e sandálias, de que sobreviveram alguns vestígios encontrados em túmulos com perto de cinco mil anos.

 A padronização da numeração, também já antiga, é atribuída ao rei Eduardo I de Inglaterra, que governou em plena Idade Média, entre 1272 e 1307.

Embora muito diferenciado no tempo e no espaço, o calçado trouxe sempre consigo a marca do estatuto social dos seus utilizadores. E essa marca aparece já nos contos tradicionais, tão antigos que a sua origem se perde nas brumas do tempo. Nas histórias do “Gato das Botas” e nas “Botas de Sete Léguas”, as botas são um adjuvante do herói, imprescindível a que este atinja os seus objetivos, tornando-se assim um símbolo do prestígio masculino. Na Cinderela, o sapatinho perdido pela heroína, identificando-se com esta na beleza e feminilidade, leva ao reencontro final e ao casamento com o príncipe, promoção máxima a que ela poderia aspirar.

Mas os mais pobres, mesmo na Europa, continuaram descalços ainda durante muito tempo. Em Portugal, até meados do século XX, sobretudo no meio rural, havia crianças que cresciam e se tornavam homens e mulheres, sem nunca terem experimentado um par de sapatos. Por vezes lá arranjavam uns tamancos com base de madeira, confecionados em casa, único luxo a que podiam aspirar. As solas dos pés, com o decorrer dos anos, criavam uma crosta resistente que as insensibilizava contra pedras e espinhos, mas não impedia que as infeções, sobretudo o tétano, proliferassem.

Augusto Gil, no seu poema “Balada da Neve”, datado de 1909, retrata bem o sofrimento das crianças pobres, nos frios invernos da Guarda, que ele via a arrastarem pelo chão os pés enregelados:

“Fico olhando esses sinais

da pobre gente que avança

e noto por entre os mais

os traços miniaturais

de uns pezitos de criança

Descalcinhos e doridos

a neve deixa ainda vê-los

primeiro bem definidos

depois em sulcos compridos

porque não podia erguê-los.

(...)

Esta era a realidade portuguesa ainda no início do século XX. E alguns, que por essa altura já tinham a sorte de ter sapatos, tratavam-nos como objetos de luxo. As raparigas de então, mais tarde já velhas, costumavam contar aos seus netos, com ar meio sério meio anedótico a seguinte história:

Ali pela zona de Sardoal, as pessoas tinham de andar alguns quilómetros a pé, para se deslocarem dos seus lugares até à igreja mais próxima, a fim de assistirem à missa dominical.

As raparigas costumavam ir em grupo e pelos zahara caminhos, geralmente maus, iam descalças, julho 2015 n°25 com os sapatos dentro de um saquinho, bem protegidos. Perto da igreja, havia uma fonte, onde lavavam os pés e depois destes limpos e enxutos, calçavam então as meias brancas rendadas, feitas à mão nos longos serões de Inverno e os sapatos de estimação bem limpos e engraxados. Certa vez, uma delas bateu distraidamente com um dedo do pé numa grande pedra, o que a deixou bastante magoada, mas recompondo-se logo, disse para as outras:

- Olhem bem, se eu viesse calçada como não estariam agora os meus sapatos!

Nas décadas de vinte e trinta do século XX, como andava ainda muita gente descalça, a propaganda do Estado Novo, vendo que isso causava má impressão, sobretudo nos estrangeiros que nos visitavam e não querendo que Portugal parecesse ser 0 país atrasado que na realidade era, começou a embirrar com “ 0 péssimo hábito de andar descalço” como se as pessoas andassem descalças por gosto e não em resultado da sua pobreza e das péssimas condições em que muitas ainda viviam.

Assim no Jornal de Abrantes de 13-12-1936, num artigo da responsabilidade da Liga de Profilaxia Social é feita uma verdadeira cruzada contra os pés descalços: alerta para os perigos de ferimentos e para a falta de higiene que representa pisar excrementos e porcarias várias “(...) e também todo aquele que anda descalço inferioriza-se espontaneamente perante a sociedade. O público deve compreender as razões que justificam a proibição de andar descalço e não deve dar ensejo a que as autoridades ponham em prática medidas repressivas."

Passados uns anos, no Jornal de Abrantes de 13-10-1940, a mesma liga refere que, “em 1928, já se conseguiu que se proibisse, no Porto, 0 péssimo hábito de andar descalço e em Coimbra aconteceu o mesmo em 1934". Continua transcrevendo uma notícia do Comércio do Porto, onde se dizia que “nos Casais da Pucariça morrera uma rapariga de 17 anos que pisara uma cana e dai resultara o tétano, tendo ocorrido não há muito tempo, outras quatro mortes com a mesma causa.”

Com proibição ou sem proibição, na década de sessenta o pé descalço desapareceu de vez do nosso país. Muitos dos mais pobres do meio rural demandaram outros países, em busca de uma vida melhor e também, no mercado, começou a aparecer calçado feito, a preços acessíveis, graças à proliferação de fábricas de confeção em série e com mão-de-obra muito barata.

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Por Teresa Aparício - Professora, membro do CEHLA

            O calçado percorreu já um extenso caminho ao longo da história humana. Desde que o Homem começou a usar a sua inteligência para enfrentar as agruras do meio ambiente que as peles de alguns animais, resistentes e confortáveis, começaram a ser utilizadas para protegerem os pés do frio e dos escolhos do caminho. Depois, a sua criatividade foi tomando conta desses objetos e foi-os tornando não só confortáveis, mas também bonitos e até reveladores do estatuto social de quem os calçava.

Que esta história é antiga, prova-o os vários instrumentos de pedra encontrados em escavações arqueológicas, que teriam sido utilizados para curtir e trabalhar as peles e que se multiplicaram a partir da domesticação dos animais, há cerca de dez mil anos.

Em pinturas egípcias antigas, já aparecem representadas as diversas fases da preparação das peles, embora só os nobres utilizassem sapatos e sandálias, de que sobreviveram alguns vestígios encontrados em túmulos com perto de cinco mil anos.

 A padronização da numeração, também já antiga, é atribuída ao rei Eduardo I de Inglaterra, que governou em plena Idade Média, entre 1272 e 1307.

Embora muito diferenciado no tempo e no espaço, o calçado trouxe sempre consigo a marca do estatuto social dos seus utilizadores. E essa marca aparece já nos contos tradicionais, tão antigos que a sua origem se perde nas brumas do tempo. Nas histórias do “Gato das Botas” e nas “Botas de Sete Léguas”, as botas são um adjuvante do herói, imprescindível a que este atinja os seus objetivos, tornando-se assim um símbolo do prestígio masculino. Na Cinderela, o sapatinho perdido pela heroína, identificando-se com esta na beleza e feminilidade, leva ao reencontro final e ao casamento com o príncipe, promoção máxima a que ela poderia aspirar.

Mas os mais pobres, mesmo na Europa, continuaram descalços ainda durante muito tempo. Em Portugal, até meados do século XX, sobretudo no meio rural, havia crianças que cresciam e se tornavam homens e mulheres, sem nunca terem experimentado um par de sapatos. Por vezes lá arranjavam uns tamancos com base de madeira, confecionados em casa, único luxo a que podiam aspirar. As solas dos pés, com o decorrer dos anos, criavam uma crosta resistente que as insensibilizava contra pedras e espinhos, mas não impedia que as infeções, sobretudo o tétano, proliferassem.

Augusto Gil, no seu poema “Balada da Neve”, datado de 1909, retrata bem o sofrimento das crianças pobres, nos frios invernos da Guarda, que ele via a arrastarem pelo chão os pés enregelados:

“Fico olhando esses sinais

da pobre gente que avança

e noto por entre os mais

os traços miniaturais

de uns pezitos de criança

Descalcinhos e doridos

a neve deixa ainda vê-los

primeiro bem definidos

depois em sulcos compridos

porque não podia erguê-los.

(...)

Esta era a realidade portuguesa ainda no início do século XX. E alguns, que por essa altura já tinham a sorte de ter sapatos, tratavam-nos como objetos de luxo. As raparigas de então, mais tarde já velhas, costumavam contar aos seus netos, com ar meio sério meio anedótico a seguinte história:

Ali pela zona de Sardoal, as pessoas tinham de andar alguns quilómetros a pé, para se deslocarem dos seus lugares até à igreja mais próxima, a fim de assistirem à missa dominical.

As raparigas costumavam ir em grupo e pelos zahara caminhos, geralmente maus, iam descalças, julho 2015 n°25 com os sapatos dentro de um saquinho, bem protegidos. Perto da igreja, havia uma fonte, onde lavavam os pés e depois destes limpos e enxutos, calçavam então as meias brancas rendadas, feitas à mão nos longos serões de Inverno e os sapatos de estimação bem limpos e engraxados. Certa vez, uma delas bateu distraidamente com um dedo do pé numa grande pedra, o que a deixou bastante magoada, mas recompondo-se logo, disse para as outras:

- Olhem bem, se eu viesse calçada como não estariam agora os meus sapatos!

Nas décadas de vinte e trinta do século XX, como andava ainda muita gente descalça, a propaganda do Estado Novo, vendo que isso causava má impressão, sobretudo nos estrangeiros que nos visitavam e não querendo que Portugal parecesse ser 0 país atrasado que na realidade era, começou a embirrar com “ 0 péssimo hábito de andar descalço” como se as pessoas andassem descalças por gosto e não em resultado da sua pobreza e das péssimas condições em que muitas ainda viviam.

Assim no Jornal de Abrantes de 13-12-1936, num artigo da responsabilidade da Liga de Profilaxia Social é feita uma verdadeira cruzada contra os pés descalços: alerta para os perigos de ferimentos e para a falta de higiene que representa pisar excrementos e porcarias várias “(...) e também todo aquele que anda descalço inferioriza-se espontaneamente perante a sociedade. O público deve compreender as razões que justificam a proibição de andar descalço e não deve dar ensejo a que as autoridades ponham em prática medidas repressivas."

Passados uns anos, no Jornal de Abrantes de 13-10-1940, a mesma liga refere que, “em 1928, já se conseguiu que se proibisse, no Porto, 0 péssimo hábito de andar descalço e em Coimbra aconteceu o mesmo em 1934". Continua transcrevendo uma notícia do Comércio do Porto, onde se dizia que “nos Casais da Pucariça morrera uma rapariga de 17 anos que pisara uma cana e dai resultara o tétano, tendo ocorrido não há muito tempo, outras quatro mortes com a mesma causa.”

Com proibição ou sem proibição, na década de sessenta o pé descalço desapareceu de vez do nosso país. Muitos dos mais pobres do meio rural demandaram outros países, em busca de uma vida melhor e também, no mercado, começou a aparecer calçado feito, a preços acessíveis, graças à proliferação de fábricas de confeção em série e com mão-de-obra muito barata.

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Abel Nascimento

Abel começou, pois, muito cedo, a ser introduzido nas técnicas e segredos do ofício e a pouco e pouco foi aprendendo a conhecer e a executar todos os passos necessários para transformar pedaços de pele em elegantes e resistentes sapatos. Interiorizou todos esses gestos habituais nos sapateiros de então, que fazem parte do nosso património imaterial e que hoje estão correndo o risco de se perderem no esquecimento.

Quando o cliente chegava, se ainda não sabia bem qual o modelo que pretendia, era-lhe apresentada uma revista da especialidade que o ajudava na decisão a tomar. Eram-lhe então tiradas as medidas com todo o cuidado, para que o sapato não ficasse largo ou apertado, mas se fosse criança ou jovem era preciso acrescentar mais uns centímetros, para que fosse utilizado o máximo de tempo possível, num pé em crescimento. Passava-se depois à fase da confeção propriamente dita: primeiro eram feitos moldes em papel que se aplicavam sobre a pele para que esta fosse cortada com precisão, pois o material era caro e não podia haver desperdícios nem enganos. As peles

mais caras eram a pelica (tirada da gazela) e o calfe (tirado da vitela), já a pele de cabra era a mais barata. Uma vez cortados, os vários pedaços eram cosidos uns aos outros numa máquina própria e depois aplicados sobre uma forma que reproduzisse o mais fielmente possível o pé do destinatário. (Um sapateiro tinha que ter muitas formas, pois os tamanhos e modelos dos pés eram muito diversificados. Antigamente eram feitas de madeira, mas mais recentemente passaram a ser de plástico, material mais barato e resistente.) A sola, feita de pele de bovino, vinha geralmente de Alcanena, o mais importante e antigo centro da indústria de curtumes na nossa região. Era sempre cosida à mão e para facilitar a entrada da agulha na sola, fazia-se nesta um pequeno orifício com um instrumento chamado sovela e o fio utilizado (n° 5 ou n°7, conforme a grossura pretendida) era de algodão ou cânhamo. Para que os pontos não ficassem salientes e muito visíveis, no fim eram bem encerados com cerol, uma mistura de resina fervida com um fio de azeite. Nos forros era utilizada a pele de carneiro, por ser macia, e eram colados com a chamada massa de sapateiro, feita com farinha grosseira de milho ou trigo, misturada com água e vinagre. Tanto esta massa como o cerol eram feitos em casa. Finalmente os sapatos eram engraxados, operação que não era fácil pois, para resultar bem e ficarem reluzentes, exigia muita força de braço.

As botas ficavam geralmente da cor natural da pele e por isso não eram engraxadas, mas para ficarem macias tinham de ser untadas com sebo ou enxúndia (banha derretida) de galinha.

Abel do Nascimento trabalhou exclusivamente como sapateiro até aos quarenta e quatro anos, mas por essa altura o trabalho começara a rarear, (o calçado feito vulgarizava-se) pelo que se empregou como funcionário no Liceu de Abrantes, depois Escola Secundária Manuel Fernandes, onde esteve até à reforma. Mas como o “bichinho” da sua primeira profissão continuava a viver com ele, depois de aposentado continuou a trabalhar, fazendo então apenas arranjos e já não calçado novo como antigamente, ocupação que apenas deixou há pouco, por motivos de saúde.

Em Vale das Mós, fomos encontrar dois irmãos, Capitolino Dias Bernardino de oitenta e cinco anos e Manuel Dias Bernardino de noventa anos, que são dos raros sapateiros que, no concelho de Abrantes, ainda se dedicam à confeção de calçado.

Como era habitual na época, começaram a aprender este ofício ainda crianças de onze, doze anos, após a saída da escola e até hoje não mais largaram esta profissão.

Aprenderam com o pai que, como eles, era sapateiro e que também trabalhou até que as forças lho permitiram. Antigamente trabalhavam muito e já nem têm conta o número de sapatos e botas que confecionaram ao longo da vida. Chegaram a fazer doze pares por semana, em certas alturas trabalhando intensamente todos os dias, exceto ao domingo à tarde, das cinco da manhã até às oito da noite. E mesmo assim, como praticamente ali toda a população mandava fazer o calçado, havia quem ficasse em lista de espera três a quatro meses e isto apesar de muitos andarem descalços. Os trabalhadores que andavam calçados tinham apenas dois pares de sapatos ou botas: um par para os domingos e dias assinalados e outro par para o trabalho. Este último tinha de ser bastante resistente, dada a dureza da vida no campo. Quando o pneu se vulgarizou, os homens começaram a usar, para o trabalho, botas com sola de pneu, resistente e impermeável, deixando as antigas solas de pele de bovino protegidas com cardas, que também eram duráveis, mas mais escorregadias. As mulheres usavam sandálias ou sapatos com atacadores e frequentemente protegiam as solas com os chamados protetores (uns pedacinhos de metal colocados nas extremidades) pois o calçado era caro e o dinheiro quase sempre bem pouco.

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Capitolino Dias Bernardino.

Hoje, a idade já não permite a estes dois irmãos trabalharem com o mesmo ritmo e também são poucas as encomendas de calçado novo: apenas algumas botas e sapatos de mulher a imitar os antigos são às vezes encomendados por ranchos folclóricos. Os seus clientes têm, contudo, a garantia de que, com eles, o calçado continua a ser feito como antigamente: confecionado à mão e apenas com peles naturais.

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Os restantes sapateiros que encontrámos limitam-se apenas a fazer arranjos, pois o calçado feito é hoje abundante, variado e ao alcance de todas as bolsas.

A indústria do calçado em série essa sim proliferou e teve e tem alguma importância no nosso país. Na década de oitenta do século XX, com a entrada de Portugal na Comunidade Europeia e a consequente liberalização dos mercados, como então se encontrava antiquada, com empresários pouco alfabetizados e muita mão-de-obra infantil, entrou em declínio. Mas este é um sector em que a nossa indústria, inteligentemente, conseguiu dar a volta à situação e hoje consegue apresentar no mercado internacional produtos de vanguarda, com marcas prestigiadas, vendidas por esse mundo fora em lojas de luxo.

IN: APARÍCIO, Teresa – Profissões e vivências em vias de extinção - os sapateiros e as suas pequenas oficinas familiares. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 13. Nº 25 (2015), p. 29-34