Por Teresa Aparício - Professora, membro do CEHLA
A palavra cerâmica indica o produto obtido com matéria-prima inorgânica, não metálica, denominada argila, cuja propriedade essencial é que, quando misturada com água, dá uma pasta plástica, muito moldável e que ao calor solidifica e endurece. A qualidade do produto final depende muito da argila utilizada e da eficiência da variada série de operações intervenientes no seu fabrico: extração, transporte, modelação, cozedura, arrefecimento, etc...
A argila começou a ser utilizada pelos seres humano desde há cerca de dez mil anos, no período neolítico, quer em materiais de construção, quer em objetos de cozinha. Na Mesopotâmia, entre os rios Tigre e o Eufrates, como era uma região muito pobre em pedra, já há cerca de cinco mil anos se construíam templos, torres, denominadas zigurates e palácios com tijolos feitos de argila misturada com palha e depois secos ao sol. Embora este material seja muito mais frágil que a pedra, ainda hoje se encontram vestígios destas construções na Síria e no Iraque.
Também, nessa mesma região se descobriram há anos verdadeiras bibliotecas constituídas por milhares de tijolos escritos com caracteres gravados com uma cunha, daí a denominação de escrita cuneiforme. Esta escrita já foi decifrada o que nos deu acesso às vivências e crenças dos sumérios e babilónios, antigos povos do Médio Oriente, que tantos legados deixaram à cultura ocidental.
Mais tarde, sobretudo romanos e árabes continuaram a utilizar o tijolo em construções que continuam a desafiar os séculos e que ainda hoje nos espantam pela sua beleza e resistência. E até aos nossos dias, os materiais cerâmicos continuaram a ser utilizados na construção, embora hoje bastante ultrapassados pelo cimento armado, que se tem espalhado por esse mundo fora.
No nosso país, como em todo o lado onde a argila abunda, havia outrora inúmeras cerâmicas artesanais que forneciam os materiais às construções locais.
A Cerâmica Tejo é das poucas sobreviventes dessas cerâmicas tradicionais que ainda se encontra a laborar. Antigamente, todo o ciclo da produção era manual e ainda hoje, com apenas algumas pequenas alterações que têm como finalidade tornar algumas fases do trabalho menos penosas, se mantém fiel aos antigos processos de fabrico.
Foi seu fundador Joaquim Lopes Cadete, agora com 84 anos e que apesar da idade ainda gosta de ir todos os dias até à cerâmica ver como está a funcionar este espaço, que para ele é como se fosse mais um filho, no entanto a gestão está agora entregue à sua filha Lázinha Cadete que se encarrega da parte administrativa e ao neto Marco Cadete, que viveu e cresceu neste espaço e que hoje gere a laboração e a comercialização do produto.
Nesta cerâmica fabrica-se tijolo burro e tijoleira, mas antigamente também produziam a chamada telha de canudo ou mourisca.
Joaquim Cadete começou desde cedo a lidar com o barro e este tornou-se depois o companheiro de toda uma vida. Aos doze anos, logo após a escola primária, foi trabalhar como aprendiz para uma das muitas cerâmicas então existentes em Mouriscas. O tijolo burro e a telha de canudo eram então muito utilizados em construções várias, pelo que as cerâmicas artesanais vendiam com facilidade e por vezes até nem tinham mãos a medir. Na sua juventude chegou a andar nos barcos que transportavam pelo Tejo, até Lisboa, produtos vários e entre eles os cerâmicos, que depois eram utilizados na construção, então em franco desenvolvimento na capital e em vários locais do Ribatejo.
Mais tarde, já adulto, resolveu começar a trabalhar por conta própria, primeiro arrendando telheiros (nome que se dava então a estas cerâmicas artesanais) e depois, a meio da década de sessenta, criou o seu próprio espaço precisamente neste local, que ainda está hoje a laborar e onde a quase totalidade das fases de fabrico continua manual. A denominação telheiro, que se aplicava antigamente a este tipo de cerâmicas, provem do facto de que eram constituídas por um pequeno barracão coberto de telha, onde eram moldados, em formas de madeira, sobretudo telhas de canudo e tijolo burro. Antes de irem para o forno, eram colocados a secar numa eira anexa, que tinha de ser previamente muito bem varrida, para que nenhuma pequena impureza ficasse a marcar os produtos que ali eram colocados ainda moles.
O barro utilizado nesta cerâmica não é comprado, é retirado de propriedades próprias, não muito distantes do local de fabrico. Hoje e escavado com uma retroescavadora e depois transportado em trator até ao local onde vai ser trabalhado. Antigamente esta tarefa era bem mais difícil: o barro era cavado com enxadas e depois transportado em carros puxados por animais. Mas o próprio trabalho da escolha do barro não é simples, é até dos mais complexos, pois requer um grande conhecimento dos diversos tipos desta matéria-prima Para que o produto final saia com qualidade e necessário misturar três a quatro qualidades de barro que se diferenciam apenas pela sua consistência, o que não é tarefa fácil. A tijoleira requer barros mais fracos e o tijolo burro barros mais fortes.
Uma vez o barro amontoado em locais diferentes, consoante a qualidade e depois de bem limpo das pedras e outras impurezas, é levado para um tanque chamado barreiro onde é misturado com água, que hoje e retirada através de um furo artesiano. Noutros tempos, a água provinha de uma nora, cujos alcatruzes eram movidos por animais. Depois de remolhado, no dia seguinte o barro é retirado para uns cilindros onde e bem misturado e amassado. Presentemente, esta e a única peça mecânica que intervêm em todo o processo de fabrico, sendo as restantes fases manuais. Antigamente o barro era amassado a enxada por homens que se encontravam dentro do barreiro e depois transportado por mulheres, dentro de recipientes de madeira chamados cochos, ate a eira onde outros de joelhos no chão, protegidos com uma espécie de rodilha para não se magoarem, as esperavam para fazer a modelação.
Agora, depois do barro bem amassado nos cilindros, são retirados pedaços que são colocados em formas de tijolo ou tijoleira, consoante o fim a que se destinam. As formas hoje são de alumínio, mas antigamente eram de madeira. Nestas formas antigas, sobretudo as tijoleiras saíam mais imperfeitas e então era necessário rasparas extremidades (ou seja, as barbas) com uma foice, para que ficassem mais lisas. Chamava-se a esse trabalho raspar as tijoleiras. Em tempos passados, quando também fabricavam telhas de canudo ou mouriscas, estas eram moldadas em formas próprias, também de madeira, chamadas ganapos e secavam ali mesmo no chão do terreiro e de preferência ao sol. Era necessária muita habilidade para retirar a telha da forma sem a deixar cair ou deformar-se, pelo que havia até uma pessoa especializada para esse tipo de trabalho.
Quando têm já a consistência desejada, os materiais retiram-se dos moldes e encantilam-se, isto e empilham-se em pequenas colunas abertas de modo que o ar possa passar e assim secarem mais rapidamente. Ficam então sob um recinto agora já coberto, mas arejado, ate que estejam suficientemente secos para poderem ir para o forno onde serão cozidos.
O tijolo e a tijoleira ao serem colocados no forno têm de obedecer a determinadas regras: os primeiros adagues, isto é camada, são de tijolo, vão-se depois intercalando camadas de tijolo e tijoleira, colocadas de modo a formar olhais, isto é buracos por onde o lume possa passar, sendo a última camada também de tijolo, a que se chama testo Neste, os tijolos são colocados bem unidos, como se formassem o chão de uma casa, para que os olhais que estão por baixo fiquem tapados e o calor concentrado no interior das várias camadas. Quando o forno já esta cheio, é lançado fogo a lenha colocada por baixo, ficando a cozer durante cerca de sete horas. Na parte final da cozedura, tem de se colocar lenha que faça grandes labaredas, de modo a chegarem às últimas camadas e se queime o pó negro que se foi acumulando na superfície dos tijolos, ficando então estes com o tom uniforme do barro cozido. Por vezes também é necessário queimar lenha sobre o testo, para que as últimas camadas fiquem bem cozidas. A lenha hoje é transportada em tratores, mas antigamente era levada do mato em carros puxados por animais.
Esta cerâmica ainda agora conserva dois fornos, mas só um está em funcionamento.
Presentemente apenas trabalham aqui três pessoas, mas, em tempos, quando todo o processo de fabrico era manual, chegaram a trabalhar vinte e até mais operários, sobretudo no Verão, pois era um trabalho sazonal. Grande parte das instalações eram então descobertas e só funcionavam durante o tempo mais seco e quente, para os materiais poderem secar mais facilmente. Nas décadas de sessenta, setenta e oitenta do século XX, quase todos os rapazes de Mouriscas, vinham para ali trabalhar durante as férias grandes, ou para ganharem algum dinheirito ou até como castigo por estudos malsucedidos. Quando surgia alguma trovoada repentina, via-se então toda a gente a correr para acumularem os produtos já secos ou a secarem, no meio da eira onde eram tapados rapidamente de modo a não se molharem. Por vezes, nessas noites quentes, os rapazes andavam nas festas de Verão, mas se a trovoada se avizinhava, deixavam rapidamente os seus divertimentos e corriam até à cerâmica para salvarem os produtos em perigo.
Os materiais fabricados neste tipo de cerâmica são refratários, isto é podem suportar altas temperaturas. Com eles se fabricaram os fornos da antiga metalúrgica Duarte Ferreira e os muitos fornos de cal cujos vestígios ainda se encontram na nossa região, nomeadamente na Barca do Pego e no Rossio. Era também com eles que se construíam os inúmeros fornos de pão que as pessoas do meio rural construíam anexos às suas habitações.
Hoje este tipo de materiais rústicos, já relativamente raros, vão tendo ainda saída, sobretudo em alguns nichos de mercado, mais selecionados e exigentes, que procuram um tipo de construção diferente, sem o betão armado habitual, que a partir da última metade do século XX, invadiu todo o sector imobiliário, desde as maiores cidades às mais recônditas aldeias.
Joaquim Cadete
IN: APARÍCIO, Teresa – Profissões e vivências em vias de extinção: a Cerâmica Tejo, em Mouriscas. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 13. Nº 26 (2015), p. 49-54