Teresa Aparício - Professora, membro do CEHLA.
Desde sempre que a humanidade se viu atormentada por males de várias espécies com que não sabia lidar, recorrendo para os combater a processos vários, alguns sobrenaturais (espíritos e deuses) outros naturais, sobretudo a plantas de que, pela experiência, se iam conhecendo as propriedades terapêuticas.
Em culturas antigas, xamãs e feiticeiros recorriam frequentemente ao sobrenatural para realizarem curas, que lhes granjeavam prestígio na sua comunidade, e as bruxas na Idade Média procuravam debelar (ou até provocar, como era o caso da magia negra) males no corpo e no espírito, com rezas acompanhadas por objetos (alguns macabros) ou plantas, rituais estes que eram transmitidos de geração em geração. Ainda agora, algumas mulheres já de idade, sabem benzer o quebranto, o cobrão, (zona, uma espécie de herpes) as quebraduras (hérnias), etc. Os chamados bruxos, bruxas, tarólogos e afins dedicam-se hoje, mais a problemas psicológicos, pois com o avanço da medicina as pessoas recorrem a outros meios, apenas em casos absolutamente desesperados.
Cada um destes agentes da chamada medicina popular dava para estudos desenvolvidos e pluridisciplinares. Mas não é sobre eles que me vou debruçar agora, mas sim sobre os chamados curandeiros. Estes eram geralmente homens, a maior parte das vezes analfabetos e as pessoas acreditavam que eles nasciam com um dom especial que na maior parte das vezes se manifestava ainda no ventre materno (falavam ou choravam na barriga da mãe). Não cobravam preço algum pela consulta, apenas recebiam aquilo que lhes queriam dar e, quando se tornavam famosos, eram frequentemente perseguidos pelos médicos da medicina clássica e até pelas autoridades, sobretudo na altura do Estado Novo.
Para as suas curas recorriam sobretudo a processos naturais, pois conheciam bem as plantas silvestres e as suas propriedades medicinais.
Casa do Curandeiro Sendeiras
Para as suas curas recorriam sobretudo a processos naturais, pois conheciam bem as plantas silvestres e as suas propriedades medicinais. Viam o que os outros não viam e geralmente nem era necessário o paciente estar presente, o curandeiro precisava apenas de observar uma peça de roupa dele, para descobrir o mal de que sofria. Eram erradamente confundidos com bruxos por se considerar que tinham um dom sobrenatural, mas enquanto este dom era conotado com o bem (com Deus), o dos bruxos era conotado com o mal (com o diabo).
Júlio Dinis no seu livro A Morgadinha dos Canaviais, faz a descrição de um destes curandeiros, que é uma das personagens do livro: Na aldeia atribuíam-Ihe (ao tio Vicente) curas milagrosas, obtidas com plantas silvestres, a cuja cultura e colheita consagrava as melhores atenções e canseiras.
Ninguém lhe queria mal, que a ninguém o fizera nunca. Poucos, porém, ousariam, depois do esconder do sol, ir procurá-lo à sua casa isolada, escondida num quintal que era todo o amor do velho.
Em todos os casos intrincados vinham procurá-lo e ele seguro da sua proficiência, em caso algum recusava um alvitre (...). Os costumes do velho, que errava por montes e vales à procura das plantas cujas ocultas virtudes conhecia, as suas maneiras rudes, a austeridade da fisionomia, a franqueza sem contemplações com que dizia quanto pensava, tinham calado fundo no imaginário popular, mas eram poucos os que se atreviam a ir a horas mortas à habitação do velho.
Quando na adolescência Li este Livro, imediatamente relacionei esta personagem com um caso passado comigo, na infância e cujo relato ouvi muitas vezes aos meus pais:
Quando tinha cerca de dois anos tive um problema de pele que me provocava imensa comichão e que os médicos tentavam em vão debelar. Os meus pais estavam já a ficar bastante desesperados e foi então que o meu pai resolveu ir a um curandeiro muito conhecido, que havia por essa altura nas Bicas, perto de Tramagal, levando apenas uma peça de roupa minha. O curandeiro, que se chamava Manuel Josué, olhou para a roupa e passados uns momentos disse:
- Esta doença de pele é fácil de tratar e se fizer o que lhe digo a menina dentro de oito dias estará curada. Faça um cozimento com ramos de alecrim, folhas de eucalipto e saramagos.com esta água lave a zona doente todos os dias de manhã e à noite e depois unte-a com banha de porco sem sal. Os meus pais fizeram o tratamento prescrito e realmente, como ele dissera. No prazo de uma semana estava curada.
Sete foi sempre, desde a Antiguidade, considerado um número mágico.
Josué Pires, sobrinho de Manuel Josué
Fiquei com esta história no ouvido e há uns meses, passando pelas Bicas, resolvi perguntar a algumas pessoas já idosas que encontrei, se tinham conhecido o Manuel Josué. Disseram logo que sim e pelos vistos o curandeiro deixara memórias muito marcantes nos seus conterrâneos. Também ainda ali viviam alguns familiares de cujo nome e morada me informaram.
Mais tarde procurei-os, falei com uma neta, Maria Narcisa.de 80 anos.com o marido desta, Manuel Joaquim Pires.de 82 e com os sobrinhos Josué Pires Garoto.de 96, e Manuel Henriques de 87 anos. Todos tinham imensa coisa a contar sobre o seu familiar, já falecido há muito.
Nasceu nas Bicas, em finais do século XIX, não sabem bem ao certo quando, mas talvez por volta de 1890. Filho de Josué António e de Rosa Cecília, foi o sétimo filho do casal (sete foi sempre, desde a Antiguidade, considerado um número mágico) e também se constava que chorara três vezes na barriga da mãe o que era sinal certo de que a criança traria consigo um dom, mas perdê-lo-ia se ela, na altura, contasse a alguém o que se estava a passar.
Como era habitual com os pobres, não foi à escola e desde criança começou a trabalhar como pastor. Com o gado andava pelos montes e aí aprendeu ler a natureza, ficando a conhecer bem as plantas e os animais que encontrava no seu caminho. Mas cedo o seu dom especial se começou a manifestar: afagava animais selvagens (as raposas e outros) como se fossem meigos cães domésticos e as perdizes, que estavam no ninho a chocar os ovos, deixavam que ele lhes mexesse, continuando calmas no seu lugar.
Também conseguia ver o que as outras pessoas não viam. Um dia andava no campo com os seus animais, quando notou que lhe tinham desaparecido uma cabra e dois cabritos. Como não podia deixar o rebanho, pediu a um rapazito que com ele andava que fosse em busca dos animais perdidos. Este procurou, procurou em vão, pelas redondezas, até que resolveu regressar, mas antes, como estava cansado, sentou-se junto dos restos de um forno de carvão e, para assinalar a sua passagem, fez uma cruz no chão. Regressou muito desanimado, parece que os animais se tinham sumido. Então Manuel Josué tirou o barrete, olhou fixamente para o horizonte e disse ao rapaz: -Vais voltar ao sítio onde fizeste a cruz, junto ao forno de carvão e vais ver que lá os irás encontrar.
O rapaz voltou ao sítio referido, convencidíssimo de que não iria encontrar nada, pois ainda ali estivera há pouco. Quando lá chegou ficou espantadíssimo ao ver a cabra deitada sobre a cruz e, ao lado dela, muito sossegados estavam os dois cabritinhos.
Um seu sobrinho neto, Manuel Joaquim Pires, contou-me que, estando no hospital em Abrantes, encontrou lá um homem de Gavião que, depois de conversarem um pouco, ao saber que ele era das Bicas, terra de Manuel Josué, logo lhe referiu um caso que se passara com ele: Em tempos tivera um rebanho de cabras e a certa altura estas começaram a ficar sem Leite e os cabritos, sem alimento, iam morrendo à fome. Foi consultar o Manuel Josué que Lhe disse:
- A primeira pessoa que vires ao chegar a casa é a que te anda a fazer mal ao rebanho.
Voltou para casa convencido que a primeira pessoa que iria encontrar seria a mulher, como era habitual. Quando chegou passou realmente por ela e pela sogra que estavam a coser, sentadas à porta, mas nem sequer as viu e elas também não o viram. Dirigiu-se à cozinha para ir beber água, quando apareceu uma vizinha, a quem ele começou a bater de tão furioso que estava.
- Então é você que me anda a fazer mal às cabras?!
- Pára de me bater que eu levanto-lhe a praga e nada mais de mal lhes acontecerá.
A partir daí o rebanho voltou ao normal e cabras e cabritos ficaram saudáveis.
Manuel Henriques, familiar de Manuel Josué
Maria Narcisa, neta de Manuel Josué, lembra-se bem dele, acompanhava-o com frequência, pois quando ele faleceu já tinha por volta de doze anos. Contou que um dia o seu avô andava no campo com o gado, quando se lhe dirigiram duas mulheres, uma delas levava uma criança doente ao colo. Chamaram-no, mas ele não parou, pelo contrário, começou a andar ainda mais depressa. Então a mãe da criança entregou-a à companheira e correu atrás dele que finalmente parou e falou: -Vem cá um dia sozinha e não me tragas mais essa mulher. Ela é que anda a fazer mal à criança, porque é má e invejosa.
'Nenhum remédio era confecionado por ele, apenas indicava às pessoas o que tinham de fazer’.
Ingredientes naturais para receitas do Curandeiro
A mulher foi lá no dia seguinte, levando apenas a criança. Ele observou-a atentamente, prescreveu- -lhe um remédio feito com plantas do campo e realmente passado pouco tempo a criança estava boa.
A sua fama ia-se espalhando e em breve a clientela começou a aumentar substancialmente. A maior parte das vezes nem via o doente, alguém lhe levava uma peça de roupa deste que tinha que ser branca, ele esticava-a, olhava para o sol através dela e imediatamente dizia o que era preciso fazer para tratar a pessoa. Uma vez, para o experimentarem levaram-lhe uma camisa de um homem já morto, mas ele não se deixou enganar, logo a afastou de si e disse que aquele homem não precisava de tratamento pois já falecera. Nenhum remédio era confecionado por ele, apenas indicava às pessoas o que tinham que fazer. Não usava qualquer tipo de bruxedos, prescrevia apenas produtos naturais, ervas do campo e pomadas, algumas da farmácia. Não estabelecia um preço pela consulta, pois se o fizesse perderia o dom, só recebia o que lhe queriam dar.
Vinham pessoas de bastante longe, algumas a viverem desafogadamente e como o recompensavam com generosidade, em breve deixou a vida de pastor e passou a ser curandeiro a tempo inteiro.
O sobrinho, Josué Pires Garoto, hoje com 96 anos, recorda-se bem do seu tio “benzedor”, como lhe chamavam. Um dia chegou à porta dele um homem bastante rico, dono de uma fábrica de cortiça. Vinha muito doente, já desenganado dos médicos que não acreditavam que o seu mal tivesse cura. Manuel Josué olhou para ele e disse: - Alegre-se, pois ainda não é desta vez que vai morrer!
Disse-lhe quais as ervas com que iria fazer um xarope que tinha de tomar todos os dias e este “foi como a graça de Deus”, passado um mês, o homem voltou lá completamente curado.
Um outro seu familiar, Manuel Henriques.de 87 anos, também tem muito presente a figura de Manuel Josué. Foi à sua porta que, pela primeira vez, viu nas Bicas um automóvel e era um belo carro! Pertencia a um comerciante do norte que tinha uma filha que estava paralisada. O curandeiro pegou na peça de roupa branca que o pai levava, virou-a para o sol e disse-lhe que o problema da filha tinha solução. Prescreveu-lhe um chá de determinadas ervas, uma pomada que iria comprar à farmácia e passado um mês queria vê-la. Decorrido esse tempo a rapariga foi lá com o pai e já ia a andar pelo seu pé.
A própria mãe de Manuel Henriques também foi por ele curada. Tinha um então chamado esfalfamento", andava muito cansada, adoentada e sem forças para trabalhar. Manuel Josué viu-a e disse-lhe que ela tinha que comer, pelo menos uma vez por dia, uma papa feita do seguinte modo: introduzia dois ovos inteiros com casca, dentro de sumo de limão, a casca ia-se desfazendo e, quando esta estivesse bem desfeita, misturava uma colher de sopa de banha, outra de farinha e uma pitada de canela. Passado um tempo a fraqueza passou, ficou bem e viveu saudável até aos 93 anos.
A partir de certa altura começou também a dar consultas em Malpique e foi aí que faleceu, no início dos anos cinquenta com perto de sessenta anos, ficando sepultado no cemitério de Santa Margarida da Coutada. A neta diz que ele pressentiu a morte pois, dias antes, chamou o filho e disse-lhe que queria falar com ele porque ia morrer em breve. Morreu no dia de S. João como de resto ele já sabia há muito. Há vários anos, quando o dia 24 de junho chegava ao fim, respirava fundo e dizia.
- Este S. João já passou, agora vamos ver para o ano!
Os seus remédios e emplastros eram feitos a partir de plantas silvestres que ele próprio apanhava e cujas propriedades terapêuticas conhecia muito bem.
Ingredientes naturais para receitas do Curandeiro
Uma senhora de Santa Margarida, que também fora curada por ele, quando ia visitar a campa do marido, nunca se esquecia, em sinal de gratidão, de ir também pôr uma flor junto da de Manuel Josué. A senhora morreu há pouco e a memória da sua sepultura vai-se igualmente perdendo no tempo.
Por essa altura, além deste curandeiro das Bicas, outros havia no concelho de Abrantes, embora menos famosos do que ele.
António Bento, natural de Sentieiras e infelizmente já falecido, contou-me que viveu nesta aldeia um curandeiro que ele ainda conheceu. Chamavam-lhe o tio António da Azenha e as ruínas da sua casa pintada de azul forte, ainda hoje se podem ver, escondidas no meio de arbustos e silvas. Há cerca de setenta anos servia também de consultório e parece que até ali fazia pequenas cirurgias. Vinham pessoas de longe para serem por ele tratadas e se o tratamento demorava alguns dias, também por lá pernoitavam. Os seus remédios e emplastros eram feitos a partir de plantas silvestres que ele próprio apanhava e cujas propriedades terapêuticas conhecia muito bem. Para as colher passava muito tempo no campo e como o ar puro abre o apetite, trazia sempre no bolso, dois ovos frescos que lhe serviam de lanche e que ele comia mesmo crus. Acabou por ser perseguido pela medicina clássica, que não gostava da concorrência pelo que, quase no fim da vida, foi obrigado pelas autoridades a deixar a sua profissão, o que muito o entristeceu. O local onde vivia era isolado e sombrio e as pessoas, embora o apreciassem e a ele recorressem quando necessário, não gostavam de passar por ali durante a noite, pois o tio António da Azenha, como quase todos os curandeiros, tinha fama de bruxo.
Nas Fontes, concelho de Abrantes, pela mesma altura, havia um curandeiro a que as pessoas chamavam Reixenol (Rouxinol), com algumas características semelhantes às de Manuel Josué. Como ele, conseguia fazer os diagnósticos através de uma peça de roupa, detetando de imediato se o caso era para ele ou não. A sua fama não passou contudo das imediações da sua aldeia, talvez porque esta era na altura ainda muito isolada com pouco contacto com o exterior.
A partir de meados do século XX, este tipo de curandeiros bem como os “endireitas” (estes conheciam e tratavam intuitiva mente o esqueleto humano) desapareceram quase por completo não só em Portugal, mas em quase toda a Europa. A medicina clássica foi-se desenvolvendo e tornou-se mais acessível a quase todos. E eles, profundamente inseridos na natureza, foram-se extinguindo, juntamente com a cultura própria do mundo rural de então, de onde eles emergiram e onde tinham um importante papel a desempenhar.
NOTA: Agradeço a todas as pessoas que me deram informações sobre os curandeiros e também a Rosa Barralé que me acompanhou às Bicas e me ajudou a descobrir alguns dos familiares de Manuel Josué.
IN: APARÍCIO, Teresa – Profissões e Vivências em Vias de Extinção: Os Curandeiros. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 15. Nº 29 (2017), p. 6-13