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Maria Raquel com o “apertador" que usava na hora de cortar o cordão umbilical

José Alves Jana - Professor e membro do CEHLA

Há pessoas com relevo nacional que afirmam não escrever as suas memórias porque, dizem, a sua vida “não tem interesse". Não há vidas sem interesse. Uma pessoa tem sempre uma vida singular, que é síntese da vida da sua comunidade tanto local como nacional. Isso mesmo de pode ver na vida de Maria Raquel, como é conhecida, ou Maria Marques Bento de seu nome oficial ou Maria dos Meninos, como é também identificada por ter sido mãe de um par de gémeos, na Concavada, onde ainda reside.

Tem 79 anos, quase 80. Nasceu na Fonte Velha, Ortiga (1938), onde fez a terceira classe porque “antigamente as raparigas só faziam o terceira, que era para saberem escrever uma carta aos namorados quando eles iam para a tropa, ero assim lá na minha terra". E de imediato começou a trabalhar, como era então necessário e normal. Aos 16 anos, a família, já sem o pai “há muitos anos”, mudou-se para a Barrada, mais tarde para o Vale da Rola e depois para a Concavada, “para o monte do Dr. Artur Almada e Melo”. Dali casou aos 25 anos para a povoação da Concavada. Teve cinco filhos e ficou viúva há 12 anos. Nada de verdadeiramente singular, até aqui, nem sequer o seu casal de gémeos.

No entanto, desde cedo começou a demonstrar interesse pelas coisas da saúde. “Os meus avós, os pois do meu pai, vieram para a Estalagem Nova de Alvega tratar dumas hortas do senhor Diogo Ferreiro Boto. E eu, desde nova, vinha sempre nas férias para ali. 0 senhor Diogo tinha uma filha que era médica, o Dra. Virgínia." Não é preciso explicar muito donde nasceu aquele interesse de Maria Raquel. Era curiosa, há muito que gostava de crianças e a médica correspondia ao seu interesse: explicava-lhe o que podia, ensinava-lhe algumas palavras do ofício e como é que certas coisas se faziam. “Ela é que me ensinou o dar as primeiras injeções. Não era com uma seringa natural [verdadeiro], trabalhava ali o faz de conta, por exemplo com um tubo de plástico de um carro de linhas. "E explicava-lhe. “Ó Maria, vou-te ensinar como é que se dá injeções. Faz-se uma cruz [na nádega] e dá-se sempre na parte de dentro da cruz.” E assim se semeia o futuro. “Ficou cá aquele bichito. Mais tarde casei e a Dra. Maria da Piedade, farmacêutica de Alvega, já morreu há muitos anos, sabia daquele gosto que eu tinha, aquele bichito sempre a mexer, a mexer, e então foi-me indicando... E eu fui para Coimbra tirar o curso de enfermagem, numa escola, já não me lembro do nome, que fica junto do Penedo da Saudade e do convento onde esteve a Irmã Lúcia.” Após alguma investigação, confirmou, segura, que terá sido na Maternidade Dr. Daniel de Matos. Saía da Concavada às sete horas, de camioneta para o Rossio, depois de comboio para Coimbra, às terças e sextas. Aulas de manhã e de tarde. No regresso vinha “na rápida” para o Rossio e o marido ia buscá-la ou então seguia até à estação de Alvega-Ortiga, passava na barca do Sr. Vitorino, de noite, para Alvega e o marido ia buscá-la “de mota".

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Entrou, portanto, para enfermagem com a terceira classe? "Não, porque depois de casada fomos para Alhandra e lá preparei-me para a quarta classe. Fui fazer exame a Vila Franca. Mas não ficámos lá muito tempo, aquilo não era para mim. E antes de ir para Coimbra, ainda estive uns seis meses no Hospital [do Salvador] de Abrantes. Fazia pensos e coisas no género, mas... não era aquilo que eu queria. E a Dra. Maria do Piedade insistia comigo e acabei por ir tirar o curso de enfermeira e parteira. No fim do curso estive uns tempos na Clínica de Sta. Teresinha e aí já não ia e vinha, ficava lá.” Isto antes do 25 de Abril? “Sim. Quando foi o 25 de Abril diziam-me AH, tão longe, se te acontece alguma coisa...’mas não aconteceu nada.” A memória já não é fiel, mas pelos documentos que mostra é provável que tenha tirado o curso entre 73 e 76.

Terminou o curso com 14 valores: fez a prova escrita, mas dispensou da oral. “Porque eu sabia”, justifica. Depois, entrou ao serviço no Hospital de Pernes, dali transitou para o de Alcanena e finalmente fixou-se na Barquinha. Já cansada das andanças, regressou a casa, não recorda em que ano, e passou a trabalhar por conta própria, a fazer “pensos, suturas, injeções, partos. Fiz partos em Gavião, Coalhos, Pego, Tubaral, Casa Branca, Areia, Lampreia, Monte Galego, Ventoso, Portelas, Alvega, Ribeira do Fernando e Concavada, é claro. Ajudei muitos bebés a nascer. Alguns, dois no mesmo noite.” E explica que depois de “aparar” a criança, limpava-lhe os olhos e punha-lhe “umas gotas de sumo de limão, aquilo ardia, mas fazia bem, ou nitrato de prata, creio que era nitrato de prata, mas a memória já não lhe garante se era mesmo isso. E se vinham com dificuldades em reagir, “metia-os em água quentinha e depois em água fria, depois em água quente e a seguir em água fria, até começarem a chorar.” Depois cortava o cordão umbilical, “ainda aí tenho a tesouro”, e a seguir punha-lhe o “apertador”, uma faixa branca e comprida, com atilhos, que apertava o bebé na zona do umbigo, para o consolidar.

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Explica que sobre o umbigo “colocava uma compressa, por cima punha uma moeda de dez tostões” e sobre esta, segurando com o dedo, estendia o apertador que atava tudo de modo que o umbigo, sob o pano e a moeda, ficasse seguro. E exemplifica com um apertador de estimação, “tem quase duzentos anos”, numa boneca. Isto no seu tempo, porque “muito no antigo, punha-se cinza e um bocadinho de mascarra" para secar e cicatrizar o umbigo.

Voltamos ao trabalho de Maria Raquel, agora na sua terra. Não dava banho imediato ao recém-nascido: limpava-lhe apenas a zona dos olhos, porque “aquela gordura faz bem ao bebé" e acaba por “ser absorvida” pela pele. Após o parto ia todos os dias dar-lhe banho. Quando se lavava o bebé, “punha-se um cueiro e fazia-se nas costas [do bebé] uma cruz [como no gesto de abençoar] e dizia-se três vezes “Credo em Cruz, Santo Nome de Jesus” e o mesmo três vezes sobre a barriga com o bebé deitado de costas”. la lavá-lo “até que o umbigo se descolasse por si. Se caía hoje, já não se ia lavar o bebé.” Um dos problemas era que “o bebé não podia nascer à meia-noite, porque dava azar”. Então, “se o bebé ia nascer e via que era mesmo meia-noite, segurava-o um pouco com a mão e uma toalha e ele nascia dois ou três minutos depois e já não havia problema”.

“A roupa do bebé, mesmo as fraldas, não podia apanhar lua” não podia estar estendida quando nascia a lua, “senão tinha de ser benzida.” Benzer consistia em fazer uma cruz sobre essa roupa e dizer a oração seguinte: “Ó Lua, ó Lua/tens aqui o meu filho/para me ajudares a criar.

/Tu que és mãe/eu que sou ama, /Tu crias, /Eu dou-lhe mama. Tradição que deixou marcas até hoje nesta região.

A mãe “não podia dar de mamar sem primeiro beber água, que era para o leite da mãe refrescar, senão podia ganhar uma enterite”, explica.

E quanto à alimentação depois do parto, “algumas, coitados, nem para a sopa tinham; outras comiam uma ou duas galinhas durante o mês. E comiam mexido: água quente, açúcar e pão miudinho, vai ao lume, bate-se um ovo, mistura-se naquilo e está a cozer um bocadinho. Chamava-se mexido. Bebiam água de canela, água fervida com um bocadinho de canela; chá de laranjeira e outro chá, de borrage, que é uma erva que dá uma florzinha azul e outra cor de rosa.

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Maria Raquel em 1976

E eram apertadas, e de que maneira!  com uma toalha dobrada, segura por dois ou três alfinetes de dama. E depois punha-se uma cinta por cima. Isto, quando eu comecei era já só as mulheres que tinham família já de uma certa idade." Portanto, era um hábito que estava a cair em desuso.

"Há uns setenta ou oitenta anos, a mulher que tinha uma criança ficava durante um mês de recolhimento, não podia fazer nada, não varria, não podia abrir uma arca... O bebé tomava banho todos os dias, mas era a madrinha do céu, a curiosa que fazia de parteira, que lhe ia dar banho. Comigo também foi assim, quando eu nasci. Quando passava na rua pela minha madrinha do céu, dizia ‘adeus, madrinha, su’bênção’ e ela ‘Deus te abençoe"’ Mas no tempo em que Maria Raquel exerceu a função de parteira já não havia esse costume. “Só há aí um rapaz que me chama madrinha", diz. Restos de uma tradição já morta.

Dificuldade a sério era quando o bebé vinha de cabeça, ou quando saía primeiro um braço, ou uma perna. Era preciso “muito cuidado, com um olho na mãe e outro no bebé, sem dar cara de que estava a haver problemas". Na sua atividade de parteira, só lhe morreu uma criança. Mas o médico foi claro em declarar que não fora responsabilidade sua: “Já devia ter nascido há mais tempo".

A sua sogra também fora parteira, mas curiosa. Por isso fez-lhe “a vida negra quando foi para Coimbra [estudar]", porque “não era preciso isso”. E uma cunhada acusava-a de andar a gastar o dinheiro do marido. “Eu que ganhei tanta gorjeta, tanta gorjeta”, justifica-se. “Mas eu nunca me importei", leia-se nunca desisti. E quando veio e se instalou na Concavada, nem a sogra nem qualquer outra “curiosa" exercia já. “Só vinha aí, às vezes, uma senhora do Pego, mas não havia problemas." Abortos nunca fez, diz. Só por três vezes lhe vieram pedir, mas recusou. Em casos desses, “iam a Lisboa, ou Santarém", afirma sem grande segurança na memória.

Além disso...

Também vestiu muitos mortos. “Não havia funerárias, como há hoje, e alguém tinha de os vestir. Lavava-os e vestia-os "Quando a pessoa morre, começa a arrefecer e o corpo fica rígido, tornando muito difícil vesti-lo. “Então, para que ele dê de si, dizemos... não sei se ainda se diz, mas foi assim que me ensinaram, diz-se o nome da pessoa, por exemplo, ‘Ó Manei, estica lá o braço’, e ele estica.” Foi um enfermeiro que me ensinou. Mais tarde, o velho Paulino da agência funerária, “uma vez disse-me ‘A senhora também sabe isso?!’ Pois sei. ’Ele também fazia assim.”

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Dirigiu o Rancho Infantil da Concavada, a versão infantil do Rancho Folclórico do Senhor dos Navegantes. Em 2002 foram à Tocha e a Bemposta. Depois, acabou. Tem a casa pronta para obras, por isso apenas tem à mão o original das "Cantarinhas” da autoria de João Dias, o homem que fazia as letras para o Rancho e para as contradanças no Carnaval”.

Na parede da sala tem o diploma de dadora de sangue, mas agora já não tem idade. Um dos seus cuidados é a catequese, em particular a preparação das crianças para a primeira comunhão, para a profissão de fé e para o crisma. Quando as crianças fazem a primeira comunhão, oferecem à sua catequista um pequeno laço, ornado de um cálix, e quando fazem o crisma, oferecem-lhe uma fita vermelha, de que mostra dois exemplares.

Também cuida da capela e da casa mortuária, o que significa limpar o pó e manter limpo o chão da capela e os panejamentos lavados, para o culto, e assegurar antes do velório e depois do enterro a Limpeza e arrumação da casa mortuária.

A Maria Raquel se deve ainda a criação na Concavada, “com a ajuda de um casal do Tramagal” cujos nomes não recorda, os Escuteiros, mais exatamente o Agrupamento 1015, do CNE. “Tenho ali o fato, é para eu levar quando morrer.”

Terminamos o nosso encontro com um pedido. “Queria agradecer muito, muito, muito, à D. Maria do Céu Santos, mãe do Dr. Carlos Bento. Apoiou-me sempre, sempre, foi sempre a pessoa que me defendeu. Vivia e vive na Concavada. “Ainda hoje é uma grande amiga minha.” Se houve defesa é porque houve ataques, fica, portanto, a ideia de uma vida de luta de que muito resta ainda por contar. “Nunca fui ajudada nem pela minha família, muito menos pela do meu marido, só uma velhinha me ajudou muito com os meus filhos." E pela “grande amiga" a quem faz questão de agradecer.

Vê-se que é uma mulher empenhada na sua terra, comprometida com o que precisa de ser feito. As terras pequenas também têm história e personagens que fazem parte dessa história. Maria Raquel é uma delas. Mas também se nota que tem um certo olhar sobre o fim dos tempos. Queixa-se: “Tudo se acaba, porque ninguém quer ter trabalho". Trabalho que ela sempre quis ter. E continua a ter. E assim se vai fazendo a história também das nossas aldeias.

IN: JANA, José Alves – Maria Raquel enfermeira-parteira e muito mais na Concavada. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 16. Nº 31 (2018), p. 20-25