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Máquina de costura de João Moreira

Teresa Aparício - Professora, membro do CEHLA.

Esta é uma palavra derivada do árabe al-kaiiat, que significava tal como hoje, costureiro de homens e está relacionada com o verbo khata, este com o significado de costurar. É uma profissão velha como a humanidade, pois os homens e as mulheres sempre gostaram de ostentar o seu estatuto social através da roupa que vestiam, o que é constatado em antigas pinturas e representações várias. Sabe-se que já na Antiguidade, os bons profissionais de confeção de vestuário eram bem pagos e valorizados socialmente.

No que diz respeito a Portugal, no início da nacionalidade, no século XII, já esta profissão aparece referida nas listas dos ofícios considerados mais relevantes: tecelão, carpinteiro, ferreiro, ourives, alfaiate, oleiro, moleiro, padeiro, almocreve, entre outros. No ano de 1256 temos notícia da existência de um tal Pedro, que era alfaiate e exercia a sua profissão em Portel.

No tempo do rei D. Fernando (1350-1369) ficou célebre um alfaiate de nome Fernão Vasques que encabeçou um grupo de homens de vários ofícios que se dirigiram ao paço e ousaram aconselhar o rei para que não casasse com Leonor Teles, personagem que o povo detestava. D. Fernando, assustado com este esboço de rebelião popular, fugiu com ela para o Porto, onde casaram no Mosteiro de Leça do Balio. Passado pouco tempo regressaram e o rei, que não perdoou a afronta, mandou matar muitos dos revoltosos, entre os quais Fernão Vasques que assim pagou com a vida o seu ato de coragem.

Foi uma profissão que esteve sempre representada na chamada Casa dos Vinte e Quatro, uma corporação de ofícios criada por D. João I e cujos representantes tinham o direito de intervir em certas deliberações da Câmara de Lisboa. Este privilégio foi dado aos mesteirais como sinal de gratidão pelo apoio que lhe deram quando da crise de 1383-1385 e a Casa só foi extinta no século XIX, depois da implantação do liberalismo.

Em Lisboa, os alfaiates tinham como padroeira Nossa Senhora das Candeias, celebrada a 2 de fevereiro e participavam na procissão do Corpo de Deus com a sua bandeira. Tinham hospital próprio e capela privativa na igreja de S. Julião.

Sabe-se que no século XVI, segundo o Livro dos Regimentos dos Ofícios Mecânicos, compilado, em 1572, por Duarte Nunes de Leão, eram sujeitos a examinação isto é, submetia-se o aprendiz a um exame.se dava boas provas, o escrivão dos ofícios passava-lhe a respetiva carta e a partir daí, podia exercer livremente o seu ofício e ascender até à categoria de mestre, com todos os direitos daí inerentes.

Ultimamente já não era necessário fazer qualquer exame. Muitas vezes aprendiam com pessoas de família, pais, tios, ou irmãos ou então iam para a alfaiataria de um mestre com quem aprendiam a profissão. Ganhavam muito pouco e alguns até tinham de pagar, porque o patrão considerava que perdia muito tempo a ensiná-los, o que não compensava a ajuda que lhe prestavam.

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Páginas da revista “Vestir"

Passavam-se vários anos até poderem começar a trabalhar por conta própria, só o fazendo quando se sentiam bastante seguros, pois o tecido era caro e não podiam correr o risco de, com um corte infeliz, o inutilizar e terem de o pagar ao cliente.

Até meados do século XX, foi uma profissão que contava com muitos membros. Em Lisboa, em 1831 havia 356 alfaiates, o que era bastante para a população da capital; mesmo nas cidades e vilas mais pequenas havia vários e algumas aldeias tinham pelo menos um. Quando a clientela era muita, contratavam para a sua oficina várias raparigas que faziam as bainhas e outras costuras de menor responsabilidade. Estas, ao casarem, quase sempre deixavam o emprego, pois, até aos anos sessenta, a função da mulher casada era estar em casa a cuidar da família, frequentemente numerosa.

O mestre alfaiate tirava as medidas, fazia os moldes, com um giz próprio marcava o tecido que depois cortava sobre uma grande mesa ou arca, provava e por fim passava o fato a ferro, trabalho que não era fácil porque tudo tinha de ficar sem uma ruga e vincado a preceito para assentar bem no corpo do cliente. E é preciso lembrar que até aos anos cinquenta os ferros de engomar eram pesados e aquecidos a carvão. As brasas tinham de estar vivas e bem sopradas, pois se saltava cinza ou sobretudo alguma faúlha o tecido podia ficar estragado.

Em Abrantes, pelos meados do século passado, havia cerca de uma dezena de alfaiates e ainda hoje os mais velhos se lembram do nome de alguns: o Navalho (pai e filho), o Alexandre, o Viseu (pai e filho), o Mário, o João, o Lourenço, o Gaspar, o Rodrigues, o Manuel Dias...

Este último, que faleceu ainda não há muito, destacou-se como membro da vida política e cívica da cidade. Interessado e participativo, amigo de Ler nos tempos livres que a profissão lhe deixava, antes do 25 de Abril Lutou contra a política do Estado Novo e logo a seguir teve um mandato como deputado na Assembleia Constituinte Em Abrantes foi, até que as forças lho permitiram, elemento ativo na Assembleia Municipal e em várias outras instituições da cidade.

Quando numa povoação havia vários alfaiates, estes encontravam-se geralmente hierarquizados, não por um diploma, mas sim na opinião pública, consoante a sua habilidade pessoal, a atualização no que respeitava à moda vigente e também ao género de clientela que os frequentava. E aqui não era só o dinheiro que contava, era sobretudo a posição social decorrente do nome da família, do prestígio da profissão, etc. Os de mais elevada condição recorriam aos alfaiates mais famosos e consequentemente mais caros, além de que as classes sociais não gostavam de se misturar nem mesmo no alfaiate.

Mas se os fatos dos mais endinheirados eram todos confecionados por um profissional, o mesmo não acontecia com os pobres e até com os da classe média baixa. Estes últimos recorriam ao alfaiate apenas para irem a cerimónias festivas como casamentos, batizados etc. O vestuário do dia-a-dia era feito por costureiras que trabalhavam mais barato, ou até pela mulher que, entre outras prendas, geralmente levava para o casamento a de saber costurar, o que muito contribuía para o equilíbrio da economia familiar. Os pobres, esses então só tinham fato de alfaiate se alguém lho oferecia, a maior parte das vezes já muito usado, ou então pertença de algum defunto rico, cuja dádiva era feita para desconto dos seus pecados.

A partir da década de sessenta, as lojas de pronto a vestir difundiram-se e a população começou a aderir cada vez mais a esta forma mais prática e económica de adquirir o vestuário. Os alfaiates passaram a ter cada vez menos clientela, os jovens também começaram a achar que era uma profissão pouco atrativa e de demorada aprendizagem, pelo que, quando os velhos deixavam de trabalhar, passaram a não ser substituídos pelas gerações mais novas, até que nos nossos dias estão mesmo em vias de extinção.

João Moreira, hoje com a bonita idade de 88 anos, foi o último alfaiate da cidade de Abrantes. Ali nasceu, numa família de seis irmãos, e logo em criança começou a interessar-se pela profissão. Quando ia para a escola, que então funcionava na Rua Grande no edifício onde mais tarde esteve a Polícia, passava perto da igreja de S. Pedro, onde hoje está o teatro com o mesmo nome e aí perto estava o alfaiate Rodrigues a trabalhar na sua oficina. O pequeno João gostava imenso de observar as pessoas a coserem e a transformarem um pedaço de tecido num bonito fato de festa. Mas quando saiu da escola foi frequentar um misto de colégio e seminário dos frades salesianos, onde esteve até cerca dos 16 anos. Nessa altura achou que preferia ir para os franciscanos, ordem onde já se encontrava uma irmã sua, mas o pai não deixou, pelo que ele se aborreceu e saiu mesmo do seminário. Uma vez cá fora, tinha de escolher com urgência um novo modo de vida e então não hesitou, queria ser mesmo alfaiate.

Começou a aprender na alfaiataria Navalho onde trabalhavam pai e filho, numa casa na zona do Chafariz. Aí estavam também cerca de meia dúzia de costureiras de alfaiate, sendo uma delas a sua namorada com quem pouco tempo depois casou, tinha apenas dezanove anos. A vida não era fácil então, pois os dois ganhavam pouco, mas mesmo assim esteve lá cerca de seis, sete anos, ao fim dos quais e, já se sentindo apto, resolveu começar a trabalhar por conta própria, tendo apenas a mulher como auxiliar. Ainda se lembra dos seus dois primeiros fregueses: o capitão Costa e Manuel Lopes de Sousa, que lhe encomendou fatos para os filhos, então em idade escolar. Para se aperfeiçoar no corte, começou a assinar a revista “Vestir" da responsabilidade da Academia Maguidal que, fundada em 1934 por Manuel Guilherme de Almeida e António Mendes Batista, foi a primeira escola de alfaiates existente em Portugal. Ministrava cursos na sede e também por correspondência e nestes últimos se insere o início, em 1939, da publicação da referida revista que, com uma notável longevidade, desempenhou papel relevante na formação de profissionais do ramo e na divulgação das mais atualizadas tendências da moda.

João Moreira assinou esta revista durante vários anos e ainda hoje guarda religiosamente todos os números que recebeu. Mas, como ele diz, “esta é uma profissão que nunca está aprendida”, pois as modas mudam rapidamente, pelo que também sentia necessidade de ir por vezes a Lisboa, à sede da Academia e aí, em direto, tirava dúvidas sobre algum trabalho mais arrevesado. A sua formação e atualização estavam, pois, em boas mãos e, segundo diz, trabalhou para gente importante, artistas, políticos, etc.

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João Moreira trabalhando na sua máquina

Esteve na vida ativa durante muitos anos e sempre gostou do deu trabalho, embora por vezes aparecessem fregueses difíceis de contentar que o obrigavam a fazer emendas frequentes, mas nunca estragou nenhum fato. Ainda hoje conserva os livros dos registos das medidas que tirava aos clientes e aqueles onde assentava o preço (trabalho e aviamentos) das várias peças que confecionava. Os fregueses levavam o tecido e ele comprava os restantes materiais necessários - forros, entretelas, etc. No início, o trabalho de alfaiate não era bem pago, mas depois, a pouco e pouco, começou a melhorar. Em 1970, um fato custava ao freguês 290$00 e em 1977 este já pagava 800$00.0 trabalho começava a ser mais valorizado.

Em 1994, faleceu-Lhe a esposa, que além de companheira de vida era a sua única colaboradora no trabalho. Sem ela já se tornava difícil fazer fatos completos, pelo que a partir daí começou a dedicar-se mais aos arranjos e, mesmo depois de aposentado, continuou a trabalhar até perto dos 85 anos.

Além do trabalho de alfaiate, João Moreira sempre gostou de aprender e de cultivar o espírito. Ainda hoje gosta muito de viajar.de conhecer outras terras e outras gentes e, já viúvo, tirou um curso se francês por correspondência e lá tem na sua salinha o diploma passado pela Associação Europeia de Escolas por Correspondência, com a classificação de Muito Bom. Como prémio, foi-Lhe oferecida uma viagem gratuita a Paris, visita que ele muito apreciou. É ainda hoje aluno da "UTIA - Universidade da Terceira Idade de Abrantes” - instituição de que é sócio fundador.

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Revista “Vestir"

José Martinho Gaspar, quando era jovem, ouvia muitas histórias acerca de um alfaiate que ficou muito conhecido na sua aldeia, Água das Casas, no Norte do concelho de Abrantes, sobre o qual refere o seguinte: Nas primeiras décadas do século passado, existiu um alfaiate em Água das Casas de nome Joaquim Dias Alves (1888-1967), conhecido como mestre Joaquim “Crespo”, a quem, aqueles que o conheceram, apelidam invariavelmente como “bom homem”. Teve alguns aprendizes, entre os quais se destacaram Máximo Francisco e Joaquim Alves, alcunhado como Joaquim “Diploma”. Este último tornou-se num alfaiate exímio que, depois de se ter deslocado para Lisboa, fez fatos para algumas figuras de destaque, entre as quais o antigo Presidente da República e Primeiro Ministro Mário Soares.

Joaquim “Crespo" fazia fatos de homem, tanto para o trabalho como os então denominados “fatos domingueiros” (casacos, calças, coletes e camisas), a partir das peças de tecido adquiridas em Vila de Rei Sardoal e S. Domingos. Traçava os fatos a giz branco em cima de uma arca e, porque a clientela local não era suficiente, ia uma vez por ano à Feira da Ponte, em Ponte de Sor, vender os capotes de tipo alentejano. As raparigas, que faziam as suas próprias roupas, recorriam a este alfaiate para encomendar tecidos, a partir das amostras de que ele dispunha e por vezes também aprendiam com ele as artes de costurar.

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Joaquim “Crespo" antigo alfaiate de Água das Casas

Era na sua alfaiataria que estava localizado o correio, ou seja, era ali que se entregava e Levantava a correspondência. Nesta altura, não havia carteiros, havendo uma pessoa do Vale de Açor responsável por trazer/levar o correio de/ /para o transporte coletivo que passava em S. Domingos. Não é muito estranho que o correio funcionasse nesta alfaiataria, pois Joaquim "Crespo” era uma das poucas pessoas que sabiam ler e escrever em Água das Casas, pelo que auxiliava os seus conterrâneos na leitura e escrita das cartas. Este alfaiate também ensinou a várias pessoas os rudimentos da leitura e da escrita.

Como Joaquim “Crespo”, muitos outros alfaiates trabalharam por essas aldeias, só que ninguém registou as suas memórias, que ficaram assim perdidas no tempo. E é pena!

Fontes / Bibliografia

  • Dicionário da História de Portugal, direção de Joel Serrão, edições Figueinnhas.2006
  • Enciclopédia Luso Brasileira de Cultura, edições Verbo, Lisboa
  • Pacheco, Soma, Povo que Lavas no Rio, jornal Gazeta do Teio, 22/12/2005

Websites

IN: APARÍCIO, Teresa – Profissões e Vivências em Vias de Extinção: Os Alfaiates. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 15. Nº 30 (2017), p. 26-33