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Maria José Salvador Maximiano - Formadora de Formação Profissional-área tecnológica

Do Pão ao Folar

Tudo começou com os Lusitanos há 1800 Anos. Na base dos bolos estavam a farinha de bolota e o mel, já que a farinha de cereais não abundava na Lusitânia e o açúcar não era conhecido.

A confeção de doces ocorria somente em épocas de festa e destinava-se aos membros do “clã”. Com a chegada dos romanos, há cerca de 1800 anos, os doces eram vendidos nas ruas e praças das cidades, nessa altura já com farinhas de cereais e o açúcar, excecionalmente, em casa de pessoas ricas e como condimento especial.

Com a queda do Império Romano os doces passaram a ser confecionados nos mosteiros, conventos e sés e havia a possibilidade de ir mantendo o conhecimento de muitas receitas que devem ter sido populares. A conquista da Península Ibérica pelos mouros possibilitou, com o desenvolvimento da agricultura cultivo e a refinação do açúcar nas costas do Mediterrâneo. Segundo Maria de Lourdes Modesto e Afonso Praça o “folar seria uma espécie de contraponto do pão ázimo que tem o peso teologal do sacrifício e da penitência”.

O Folar da Páscoa

Na tradição anterior à bíblica, a Páscoa tinha Lugar, tal como hoje, na primavera e assumia caráter agrícola, festejando o desabrochar da natureza, nomeadamente das searas que haviam sido cultivadas. Era, pois, já aí, a festa da novidade e da renovação, ou seja, da passagem de um estado para outro.

Após os meses de inverno e a Longa privação da Quaresma, a Páscoa dá início a uma intensa atividade em termos de preparações culinárias e de intercâmbio. A Páscoa é, pois, uma época característica de presentes cerimoniais, nomeadamente de natureza alimentar - os «folares». A palavra, porém, numa aceção restrita e mais precisa, designa um certo tipo de bola, específica do ciclo pascal.

Como bolo de Páscoa, existem, em Portugal, diferentes espécies de «folares». O mais corrente e difundido é o de bolo em massa seca, doce, e Ligada, feito com farinha de trigo, ovos, Leite, azeite, banha, açúcar, fermento, e condimentado com canela e ervas aromáticas, geralmente erva-doce, - uma espécie de regueifa ou fogaça, encimado, conforme o seu tamanho, por um ou vários ovos cozidos inteiros e em certos Lugares tingidos, meio incrustados e visíveis sob as tiras de massa que os recobrem.

Este tipo de «folares» constitui a regra quase sem exceção em todo o sul do país, no Algarve e no Alentejo, e é corrente na Estremadura e nos arredores de Lisboa; no centro do País, é ainda mais frequente nas Beiras, e encontra-se também na região do Douro. Contudo, no nordeste montanhoso e no planalto de Trás-os-Montes, o «folar» é diferente. A massa leva farinha, ovos, Leite, manteiga e azeite e encerra bocados de carne de toda a espécie - vitela, frango, coelho e, sobretudo, porco e rodelas de salpicão - cozidos dentro da massa.

Conforme as regiões e localidades, os «folares» doces podem apresentar algumas variações e particularidades, no que respeita às suas formas; no Sul, eles são redondos, espessos e maciços, e comem-se no Domingo de Páscoa, ou em certos sítios, na Sexta-feira Santa, na Segunda-feira a seguir à Páscoa, ou mesmo, no final do ciclo, em Domingo de Pascoela. Nos arredores de Lisboa, eles têm uma forma ovalada; em Aveiro, a de um coração; etc.

Lenda do Folar da Páscoa

De entre as várias Lendas que se contam sobre a origem do folar da Páscoa, esta é a mais simples, simples como a alma do povo, pois do povo ela vem. É uma Lenda tão antiga que se perde no tempo, desconhecendo-se a sua origem. Reza esta Lenda que, numa aldeia portuguesa, vivia uma jovem chamada Mariana que tinha como único desejo na vida o de casar cedo. Sendo devota de Santa Catarina, tanto rezou a esta Santa da sua devoção que a sua vontade se realizou e Logo Lhe surgiram dois pretendentes: um fidalgo rico e um Lavrador pobre, de seu nome Amaro, ambos jovens e belos. A jovem voltou a pedir ajuda a Santa Catarina para fazer a escolha certa através desta oração:

Minha roquinha esfiada

Meu fusinho por encher,

Minha sogra enterrada,

Meu marido por nascer.

Minha Santa Catarina,

Com devoção e carinho

Tomai-vos minha madrinha,

Arranjai-me um maridinho.

Reza ainda a lenda que enquanto Mariana estava concentrada na sua oração, bateu à porta de Amaro, o lavrador pobre, a pedir-lhe uma resposta e marcando-lhe como data limite, o Domingo de Ramos. Passado pouco tempo, naquele mesmo dia, apareceu o fidalgo a pedir-lhe também uma decisão. Perante este dilema Mariana não sabia o que fazer. Chegado o Domingo de Ramos, uma vizinha foi muito aflita avisar Mariana que o fidalgo e o lavrador se tinham encontrado a caminho da sua casa e que, naquele momento, travavam uma luta de morte. Mariana correu até ao lugar onde os dois se defrontavam e foi então que, depois de pedir ajuda a Santa Catarina, Mariana soltou o nome de Amaro, o lavrador pobre. Na véspera do Domingo de Páscoa, Mariana andava atormentada, porque lhe tinham dito que o fidalgo apareceria no dia do casamento para matar Amaro. Mariana rezou a Santa Catarina e a imagem da Santa, segundo reza a lenda, sorriu-lhe. No dia seguinte, Mariana foi pôr flores no altar da Santa e quando chegou a casa, verificou que, em cima da mesa, estava um grande bolo com ovos inteiros, rodeado de flores, as mesmas que Mariana tinha posto no altar. Correu para casa de Amaro, mas encontrou-o no caminho e este contou-lhe que também tinha recebido um bolo semelhante. Pensando ter sido ideia do fidalgo, dirigiram-se a sua casa para lhe agradecer, mas este também tinha recebido o mesmo tipo de bolo. Desta forma todos ficaram em paz e união. Mariana ficou convencida de que tudo tinha sido obra de Santa Catarina.

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Inicialmente chamado de folore, o bolo veio, com o tempo, a ficar conhecido como folar e tornou-se numa tradição que celebra a amizade e a reconciliação. Durante as festividades cristãs da Páscoa, no Domingo de Ramos os afilhados oferecem aos padrinhos um ramo de flores e recebem em retribuição um O Folar no Dia de Páscoa.

Tramagal

A presença humana em Tramagal ocorre desde tempos ancestrais, o que é confirmado através de múltiplos testemunhos arqueológicos, segundo atestam os autores da Carta Arqueológica de Abrantes.

Em termos de toponímia, a historiografia local, menciona a referência a Tramagal, ou mais exatamente “tarmagal”, num documento do séc. XIII.

Avançando no tempo, nas Cortes de 1439, em Lisboa, os representantes de Abrantes diziam que “Uma das melhores coisas de Abrantes é um campo da parte além do Tejo em que mais pão e vinho se colhem; e porque el-Rei D. João proibiu que matassem porcos ou veados num tamargal que está junto com esse campo, deixou este de ser aproveitado como deveria.

O lugar do Tramagal ascendeu à condição de freguesia/paróquia em 1754, no dia de S. João, ou seja, a 24 de junho. Terá desempenhado papel determinante neste processo o Pe. Luís António Ferreira Bairrão, nascido em 1719 e que veio a falecer em 1804, ao fim de 58 anos de vida sacerdotal. A resposta aos inquéritos ordenados pelo Marquês de Pombal, vulgarmente conhecidos como Memórias Paroquiais (1758), saíram do seu punho e dão informação muito preciosa, bem estruturada e redigida com excelente caligrafia.

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Tramagalenses nos seus fatos de domingo, para assistir à missa (1938). Fotografia inserta na obra “Nas Asas de uma Borboleta", da autoria de Patrícia Fonseca, 2006, p 47, sem fonte e autoria.

Para além de muitas outras informações, as contam que viviam no Tramagal, a uma Légua de Abrantes, 436 pessoas e que a padroeira é a Senhora da Oliveira. Também são dados a conhecer elementos interessantes relativamente à agricultura local e às suas colheitas, em que abundavam o milho grosso e miúdo, acompanhados de algum centeio, trigo, feijão e azeite.

Fica-se a saber que o Rio Tejo era, à época, caracterizado pelas suas caudalosas enchentes” e que no inverno nele progrediam embarcações de água acima", enquanto no verão a navegação se limitava a batéis. E este rio proporcionava aos Tramagalenses a oportunidade de pescar múltiplas espécies, a saber: barbos, bogas, salmões, muges, sáveis e sabogas. O rio, com as suas cheias, deixava terras ribeirinhas inundadas de estercos e areais grossos, “a que chamam nateiros", excelentes para a produção agrícola, onde se semeavam cereais, especialmente milho grosso.

Encontra-se no Arquivo Nacional da Torre do Tombo a “Mercê coutado do Tramagal” concedida pelo rei D. João II a D. João de Almeida em 17 de abril de 1492.

Este rei era casado com a rainha D. Leonor que na lenda exclama “grande Tramagal” dando nome a esta terra.

A família real esteve muitas vezes no Ribatejo. Próximo de Santarém ocorreu o trágico falecimento do príncipe Afonso na sequência da queda de um cavalo. Uns anos antes de conceder a referida “Mercê coutado do Tramagal”, em 1483, o rei estando em Évora “com a Raynha e o Príncipe,e sua Corte se foy a Villa Dabrantes”.

A viagem decorreu entre 12 e 15 de julho, sendo “de aceitar que o monarca subiu o Alentejo, por Arraiolos, Pavia, Montargil” ...

Os dias estavam grandes e quentes, a comitiva real saiu de Montargil e em vez de escolher o caminho do Domingão mais longo, optou por dirigir-se diretamente para o Tejo. O trajeto levou-os por ermos sem nome, sabe-se do pendor da formosa Leonor para fundar povoações, não é difícil imaginá-la com El Rei a batizar a Biquinha (3 milhas a norte de Montargil),o sítio onde passaram uma ribeira - Água Travessa (meio caminho), mais à frente as Bicas e, à vista do rio, do grande vale, do belo campo de tramagas, o Tramagal...

A “Princesa Perfeitíssima” protegeu Gil Vicente, fez imprimir as “Viagens de Marco Polo” fundou as Caídas da Rainha, criou as misericórdias... As lendas são muitas histórias...

O Folar

...A tradição do «Folar» na região do Ribatejo também existe. Um dos seus representantes é O FOLAR DO TRAMAGAL.

Um folar diferente que tem por base a massa de pão levedada, à qual se acrescenta ovos, açúcar, raspa de limão, azeite, Leite, sal e farinha. Depois de amassar aconchega-se a massa entre lençóis e mantas para a manter quentinha para melhor levedar e reza-se a seguinte oração, fazendo três vezes a cruze com a mão:

- Deus te acrescente que és para muita gente.

A levedação é lenta, o ideal é ficar a levedar uma noite, daí em algumas regiões dizerem bolos dormidos. Depois de levedada divide-se a massa, em número igual ao de ovos usados e faz-se rolinhos em cada porção, fazer uma cruz de massa em cima de cada ovo com casca. Pincelar com o ovo batido e deixar descansar enquanto o forno aquece. O Folar do Tramagal, surge decorado com três ovos, e um outro pouco mais pequeno com um só ovo, tomando assim o nome de Folarinho.

Em Livro

A primeira publicação da receita do FOLAR DO TRAMAGAL é feita pela Editorial Lavores. Era sua diretora e fundadora Laura Santos Catita (seria mais tarde conhecida apenas por «Laura Santos») e, tanto a redação como a administração, a cargo de Jerónimo Pinteus de Sousa, ficavam à época sediados na Rua do Jardim do Tabaco, 33, 1º andar, em Lisboa.

A sua obra mais conhecida seria, contudo, «O Mestre Cozinheiro» que começou por ser vendido em fascículos na década de 1950 e que teve múltiplas reedições já na forma de livro.com sede em Lisboa (até há duas dezenas de anos). Laura Santos começou por exercer a sua atividade ligada aos livros numa pequena tabacaria de Alvalade em Lisboa.de onde partiu da década de 40 rumo a todos os recantos do nosso país, recolhendo do coração do povo, a mais completa carteira de arte culinária.

Segundo o testemunho do Sr. José Diniz, antigo bibliotecário da Fundação Calouste Gulbenkian.... “ D. Laura Santos na década de quarenta, época em que fez a sua importante recolha, permaneceu hospedada na vila do Sardoal e a partir daí selecionou todo o conhecimento da arte culinária, receitas tradicionais da região,- concelho do Sardoal e limítrofes-incluindo nessa recolha O Folar do Tramagal...»

Esta dedicada e apaixonada recolha permitiu a edição de variados títulos de cozinha, os quais fizeram desta editora líder de mercado nesta área, destacando-se alguns títulos como êxitos editoriais permanentes como é o caso de O Mestre Cozinheiro.

A 1ª edição do livro não tem ano definido, sendo a 2ª edição de 1955.

Fontes / Bibliografia

  • AAW, Revista da Federação Portuguesa das Confrarias Gastronómicas | Nona Arte N° 58, Março 2016.
  • AAW, Carta Arqueológica do Concelho deAbrantes, edição C. M. de Abrantes, em Cd-room, 2009.
  • BARATA, Filomena - Ludi Cereales - os ovos da Páscoa, in Portugal Romano - Revista de Arqueologia Romana, Abril, 2012
  • BARBOFF, Mouette, A Tradição do Pão em Portugal. Edição do Clube do Coleccionador dos Correios, 2011.
  • CAMPOS, Eduardo e SILVA, Joaquim Candeias Dicionário toponímico e etimológico do Concelho de Abrantes, Abrantes, ed. da C.M. de Abrantes, 1987.
  • CAMPOS, Eduardo e ROSA, Maria João, As Memórias Paroquiais de 1758 - Tramagal, in revista Zahara ° 5.maio de 2004, pp. 25-30.
  • GASPAR,José Martinho, Tramagal | Viagem no tempo, jornal em linha Médio Tejo.
  • MARQUES, Gentil, Lendas de Portugal, vol. IV. Circulo de Leitores, Lisboa, 1997.
  • OLIVEIRA, Ernesto Veiga de, Festividades Cíclicas em Portugal, Lisboa, Publicações Dom Quixote, Ia ed, 1984.
  • SILVA, Joaquim Candeias da, Tramagal o despontar de uma nova freguesia, in revista Zahara ° 5, maio de 2004, pp. 5-10.
  • Webgrafia
  • Lenda do Folar da Páscoa. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2005-2015. [Consult.2015-05-12].Disponível na www.infopedia.pt/$lenda-do-folar-da-pascoa
  • httpy/historiaschistoria.blogspot.pt

IN: MAXIMIANO, Maria José Salvador – O Folar do Tramagal. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 15. Nº 30 (2017), p. 54-59