daniel antonio

Por Alves Jana - Professor, membro do CEHLA

Daniel Augusto António nasceu em Mivaqueiro, concelho de Sardoal, em 1930, portanto há 84 anos. Vem para Abrantes muito cedo, aqui estuda, aqui trabalha, aqui se envolve na política, primeiro na Oposição democrática ao Estado Novo e depois no PPD/PSD, e aqui se estabelece, sendo um dos veteranos e ainda principais comerciantes do “centro histórico” de Abrantes. É, sem dúvida, uma das testemunhas privilegiadas da vida abrantina. A sua memória ainda é rica, embora, como todas as outras, tenha de ser confrontada com outras fontes. Mas não é este o lugar para fazê-lo. Aqui trata-se de ouvi-lo.

Como era a oposição, antes do 25 de Abril, em Abrantes, e como é que o senhor surge nesta atividade?

É nos anos 50 que eu me começo a desenvolver politicamente. Tive vários mentores, homens muito importantes em Abrantes, como o Dr. António Apolinário Oleiro, várias pessoas que pertenceram ao MDP/CDE [Movimento Democrático Português - Comissão Democrática Eleitoral].

E que pessoas pertenciam, em Abrantes, ao MDP/CDE?

Por exemplo o Dr. José Vasco, o seu irmão Dr. Gilberto Vasco, o Dr. Semedo, o Dr. Orlando Pereira, advogado, e particularmente a mulher (as ideias dela eram extraordinárias, não se encontra muitas mulheres com as ideias que a senhora tinha), o Sr. Manuel Dias, que ainda está connosco, o Abílio Monteiro, da ourivesaria, que já nos deixou e que era uma pessoa extraordinária, dedicado. Isto a partir dos anos 50.

Como é que, do Mivaqueiro, chega à política em Abrantes?

Eu vim para a Escola [primária] em Abrantes, que era onde depois foi a Polícia [na Rua Grande]. Depois da 4ª classe vim trabalhar para aqui [Papelaria Havaneza] e mais tarde tirei o curso comercial quando a Escola Industrial e Comercial veio para cá.

Eu chego à política porque o meu patrão, o Sr. Vítor Borda D’Água, pertencia às mesmas ideias. Eu era pequenito, andava aqui, ia distribuir a República [jornal associado à oposição ao Estado Novo], e comecei a meter- -me nisso e sobretudo a partir de 52 e com a candidatura de Arlindo Vicente a Presidente da República.

Eu recebia aqui praticamente todos os dias, porque vinha aos livros, o Dr. Apolinário Oleiro, a quem devo muito da minha formação política. [Mais tarde] o Dr. Consciência, um doutor juiz Miranda, o Barata Gil, o António e o Arturo Cortez, os filhos do Sr. Amadeu Vasco... os nomes vão-me surgindo. E assim eu comecei a ter uma atividade com eles, íamos daqui para o Souto, para o Sardoal, para a Bemposta... íamos contactar com pessoal de lá. Contactos cara a cara, era praticamente impossível fazer sessões. E quando comecei a ter mais idade, aí nos anos 60, comecei a ter uma atividade maior.

Lembro-me, por exemplo, de uma sessão totalmente desastrosa para nós, em Torres Novas, com a Dra. Maria Barroso, onde a PIDE deu na gente. Nós também éramos um bocado culpados, porque nos metíamos, não tínhamos muito medo. Desafiámo-los, e os de Tomar também, mas quem apanhou fomos nós.

Em Abrantes, a situação do MDP/CDE - nós era mais a CDE - Não estávamos muito organizados, como não estava no país, também não era muito possível. Infelizmente, nós trabalhámos, trabalhámos, trabalhámos, fomos nós que suportámos a PIDE, e quando veio a Revolução Ido 25 de Abril], um partido altamente organizado e outro já organizado, o Partido Comunista e o Partido Socialista, tomaram conta desta coisa e nós, MDP/CDE, ficámos na casca. E aí começa o mal atual do país. [A partir daí] O MDP/CDE não teve praticamente ação nenhuma.

daniel antonio1

À esquerda, João Nuno Serras Pereira, deputado à Assembleia Nacional, na sessão solene da inauguração do Monumento a Nuno Alvares Pereira (06.11.1968). À direita, Isidro Sequeira Estrela, à frente, na visita de uma ministra a Abrantes. Fotografias do Arquivo Municipal Eduardo Campos

Qual era a área geográfica que cobriam a partir daqui?

Eram os concelhos de Abrantes, Constância, Sardoal e Mação. Era a nossa área.

Quando diz “trabalhámos” refere-se, em concreto, a quê? O que faziam?

Era cativar pessoas, era falar com quatro ou cinco pessoas, onde nós íamos já combinados. E conseguimos muita gente, muita gente mesmo, por este concelho fora. E em Constância, por exemplo. Havia uma eleição, nós íamos meter o envelope com o

[boletim de] voto por debaixo da porta. Eu lembro-me de uma vez que fui a Montalvo, metemos um envelope em todas as casas e não conseguimos um voto sequer. Mas isso nunca nos afastou, continuámos a trabalhar. Eu continuei a ganhar mais força com os mentores que tinha. Havia pessoas que me incentivavam a avançar e foi assim que me fui fazendo como político. O MDP/CDE tinha várias tendências lá dentro, alguns infiltrados também - a gente até os conhecia. Os que ainda cá estão hoje, o Arturo Cortez ou o Sr. Manuel Dias podem comprovar que havia várias tendências. Tínhamos a nossa sede onde está hoje o [banco I Millennium: estava sempre guardada [quer dizer: vigiada] pela polícia. Fazíamos o que era possível, e algumas vezes fizemos o impossível. Eu tinha, ao contrário do que muita gente pode pensar, um relacionamento especial com o deputado [1961-1974] da Assembleia Nacional, o Dr. João Nuno Serras Pereira. Dava-me muito bem com ele durante esse período. O Dr. Apolinário Oleiro nunca ninguém o viu andar aí na Oposição, no entanto posso garantir que era da Oposição. Posso garantir. Pode perguntar ao Zé Dinis, um indivíduo que o Dr. Apolinário Oleiro conseguiu levar [para a Oposição]. O Dr. João Nuno Serras Pereira, e outras pessoas, nunca, mas nunca, me disseram “Não andes nisso”. Nunca! E depois da Revolução eu continuei a ser amigo dele e ele continuou a ser meu amigo, demo-nos sempre muito bem. Mesmo com o próprio Dr. [Isidro Sequeira I Estrela [um dos símbolos do Regime, em Abrantes I: eu tinha uma espécie de relação profissional com ele, eu era o administrador do Jornal de Abrantes e ele era o diretor. Eu tinha que lhe pagar, pois como diretor ele já recebia naquela época, como o Sr. Diogo Oleiro já recebia. Todos os dias, praticamente, tínhamos de conversar. Nunca ninguém me incomodou - exceto um presidente da Câmara, o Dr. Agostinho Baptista, que me ameaçou. Eu não tive grande medo nessa altura, mas ameaçou-me, disse-me para eu parar com determinadas atividades, enveredar por outros caminhos, porque senão era indicado à PIDE. Não liguei nenhuma, continuei a ser o que era. Nessa altura eu já tinha com a PIDE praticamente relações semanais ou quinzenais: eu ia à Polícia por causa dos livros, dos jornais. Algumas vezes até pensei: “desta vez vou mesmo” [preso].

Mas ia lá fazer o quê?

Tinha que ir lá explicar a quem tinha vendido os livros. É claro que nunca disse o nome de uma única pessoa. Mas há uma pessoa, um comandante de uma unidade de Santa Margarida, não vou citar o nome, que me diz: “Olha, quando eles te perguntarem, diz ‘Eu vendi esses livros para oficiais de”...daquela unidade. A partir daqui, não podiam fazer-me mais nada. Isto nos anos 60; e até 74 continuou. Eu recebia sempre os livros [proibidos] e guardava-os para as pessoas que...

Aqui na Havaneza?

Na Havaneza. Livros, jornais, discos [proibidos] vendiam-se todos. Estavam sempre vendidos. Podiam fazer a quantidade que quisessem... A Polícia vinha diariamente à procura de um ou outro jornal, mesmo estrangeiro, de livros... Para a Polícia dizíamos “Não tenho”, “Não recebi”, “Já vendi” ... Mas nunca procuravam mais nada, porque aqui conhecíamo-nos todos. Só nos apanharam revistas e livros umas três ou quatro vezes.

Nunca fui dentro, mas a coisa não andou muito longe. Até que apanhei aqui uma vez o chefe da PIDE, que era de Abrantes, o Casaca, do Rossio. Apareceu-me aqui, já com a porta fechada. Esteve aí a conversar comigo, conversou, conversou... Mas para mim e nada foi a mesma coisa.

Isto era Abrantes, nunca tivemos grandes problemas. Os PIDE’s de Abrantes, que eu conhecia, e informadores, falei sempre abertamente para eles. Eu nunca tive medo de dizer que isto estava mal. E hoje sou capaz de continuar a dizer o mesmo.

Como eram aqui as eleições? Havia sessões? Houve pelo menos uma, lá em baixo no cinema de Alferrarede. Correu bem. A sala estava cheia e não fomos incomodados. Eles permitiram que nós fizéssemos a sessão. Falou o Dr. Ferro, advogado, creio que o Dr. Orlando Pereira também falou e já não me lembro de mais.

E nos outros concelhos da vossa área, também houve sessões?

Não, foi só em Abrantes. Eles não deixavam. As pessoas tinham medo. E havia meia dúzia de pessoas, onde nós íamos.

Vivi muita coisa. Depois fiquei triste quando o MDP/CDE, no dia 1 de maio [de 1974] foi infiltrado por uma série enorme de pessoas que nunca contactaram connosco, nunca trabalharam connosco. Não cito nomes.

daniel antonio2

Agostinho Baptista, presidente da Câmara, discursa na sessão eleitoral em 1969

Mas nesse dia o Dr. Orlando Pereira estava na varanda da Câmara, e falou.

Estava. Mas eu estou a dizer infiltrados. Apareceram indivíduos que nunca... Alguns eram funcionários públicos e não se podiam expor, mas nós sabíamos que eles eram nossos. Mas no dia 1 de maio, eu não fui ao jantar, porque eu não podia ver que os MDP’s fossem postos de parte e entrassem outras figuras, não cito nomes. Nessa altura, eu comecei a ver, estes indivíduos vão tomar conta desta coisa, e tomaram.

O jantar foi no Rossio, no Vera Cruz. Esteve ali a inscrição no [café] Pelicano, as pessoas inscreviam-se, tudo bem... Mas eu, quando comecei as ver as inscrições... Mas este... Não, isto não serve para mim. E não fui. E houve mais algumas pessoas que não foram. Depois veio a Revolução e como o MDP não estava organizado...

Mas o PPD [hoje PSD] também não estava organizado e de repente aparece em força e o senhor aparece no PPD. Quer contar como foi?

Eu fui convidado, como outros, pelo Dr. Simas que era um dos nossos Idas Oposição], e até foi preso, para irmos a uma sessão ali no Montepio. O Sr. Graça Vieira, que também tinha sido convidado pelo Dr. Simas [e tinha loja aberta bem perto da Havaneza], convidou-me também. Veio uma série de gente de Lisboa. Fomos ali uma série de gente que ficou [no PPD] e outros que não ficaram. Por exemplo o Barata Gil [que viria a ser um histórico socialista abrantino] também foi. Eu fiquei e tinha uma vantagem: trazia um traquejo daquilo que já havia feito no passado. E a partir daí as coisas foram todas muito mais fáceis. Para mim, a mais difícil de engolir foi que o Eng. Bioucas, à última hora, roeu a corda e foi [concorrer à Câmara] pelo PS [em dez. 1976]. Praticamente todas as pessoas que fizeram parte da Comissão Administrativa [da Câmara, de julho de 74] foram indicadas por mim, incluindo o Eng. Bioucas. Foi muito triste para mim, quando chegámos à sede, que era lá em cima, ao pé da Casa de Saúde, e tínhamos a notícia de que o Eng. Bioucas ia pelo PS. E andou a colar cartazes comigo!...

daniel antonio3

Cabeça da Manifestação do Io de maio de 1974.

Orlando Pereira, ao centro, à sua direita, Correia Semedo e depois (calvo) Abílio Monteiro, à sua esquerda o jovem Geirinhas Rocha

Foi quase por acaso que foi para o PPD e não para o PS, disse-me uma vez.

Porque o Dr. Consciência me veio convidar, mas eu já tinha sido convidado pelo Dr. Simas. Para ir à reunião do Montepio. Fui... e pronto.

E quando foi, já sabia que era para fundar em Abrantes um partido?

Sabia, ele explicou-me. Tinham-lhe pedido de Lisboa também a ele, Dr. Simas.

Eu conheço muitas pessoas que não estavam inscritas no PPD e começaram a pagar: vinham as eleições e... “Toma lá este cheque”. Eu percorri, mais o Sr. José Graça Vieira, o concelho de Mação, Sardoal, Constância, juntamente com um doutor de Coruche, que era o número um [do PPD] em Santarém e que nos vinha ajudar. Combinávamos ir ter a casa de determinada pessoa, onde estavam também determinadas pessoas, isso já eu tinha feito no MDP/CDE. Uma coisa que nasce, nasce do nada. Eu nunca quis nada, só queria era trabalhar para que este fosse um país democrático, mas logo no jantar do 1° de Maio comecei a tirar ilações do que ia ter. Eu tanto podia ter ido pelo PS como pelo PPD, mas acabei por ir pelo PPD e... dei-me bem.

Entretanto, o MDP/CDE transformou-se em partido. Não pôs a hipótese de aderir?

Não, não. Nem eu nem ninguém, praticamente. O MDP/CDE não estava organizado, porque, se estivesse, éramos nós que tínhamos tomado conta do poder.

A seguir ao 25 de Abril, na manifestação do Io de maio, dizia-se “já sabemos quem vai ser o primeiro deputado eleito”, o Dr. Orlando Pereira. Era, de facto, a cabeça do MDP/CDE?

Era, de longe. Não quer dizer que o Dr. José Vasco não fosse, e o Dr. Gilberto Vasco, que tinha residência fixa, eram indivíduos altamente marcados. Mas nós trabalhávamos todos pelo bem do país, nem nos estávamos a ver a nós. O Dr. Orlando Pereira toda a vida quis ser notário e nunca conseguiu [por ser da Oposição]. Veio o 25 de Abril e abriram-se-lhe as portas para esse efeito, em Lisboa. Ele podia ter ido mais longe: não era muito ambicioso. Já a mulher [do Dr. Orlando] tinha uma influência extraordinária.

Estas [acima referidas I eram as figuras que tínhamos em Abrantes. E fizemos muita coisa. Não fomos felizes, porque não soubemos organizar-nos. Também não tínhamos muitas hipóteses de nos organizarmos porque eles não nos deixavam pôr o pé em ramo verde, andavam em cima da gente permanentemente. Punham um polícia à porta da [nossa] sede, sabiam bem as pessoas que entravam e saíam. O país acabou por se prejudicar com esta coisa toda, não tenham dúvida nenhuma.

A esta distância de mais de 40 anos, hoje e comparando com o que se fazia pelo país, pode dizer que a atividade da Oposição, em Abrantes era importante, era significativa, pouca ou quase nada?

Era muito significativa, era importante mesmo. Mexíamo-nos bem. Tínhamos uma sede organizada, alugada. Não íamos lá todos os dias, durante as eleições [íamos I mais. Havia um rapaz de Mação, que durante as eleições nos vinha ajudar, depois foi deputado pelo PS, o António Reis.

Não tenha dúvida nenhuma de que tínhamos muito boas cabeças nessa época. Muito melhores dos que as que há hoje, até no PSD, e no PS também não há grande coisa. Não se pode comparar o que era com o que é hoje. Mas a vida, hoje, está muito melhor que há 40 anos. Mas que está mal, não tenha dúvida nenhuma.

IN: JANA, Alves – Daniel António - oposição ao estado novo em Abrantes. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 12. Nº 24 (2014), p. 21-25