convento abrantino

Interior do Convento da Graça, já abandonado e em ruína, por volta de 1901. Deu depois lugar a um edifício camarário (1904), onde hoje funciona a ESTA-IPT

História Exemplar de Soror Maria da Visitação, a freira que “fazia chagas”

POR JOAQUIM CANDEIAS DA SILVA

INTRODUÇÃO

Este assunto não será novidade. Foi já tratado sob diversas formas e por diversos autores (basta uma olhadela à Bibliografia), e eu próprio o abordei já noutras ocasiões e noutros lugares, por exemplo no meu livro Abrantes - A vila e seu termo no tempo dos Filipes (Colibri, 2000, pp. 57-59); mas, por imposições ou contingências diversas, nunca com a profundidade e o desenvolvimento que o tema merecia. Com efeito, o sensacional caso de há mais de quatro séculos (1584-1588) tomou ao tempo características de um verdadeiro epifenómeno: mobilizou as principais estruturas do poder temporal e espiritual, mesmo além-fronteiras, empolgou a opinião pública, e - o que é sumamente relevante para nós (embora pouco divulgado e não muito honroso, diga-se) - teve muito a ver com Abrantes, por se situar aqui o seu epílogo.

Foi protagonista uma freira de Lisboa (mas com ascendência abrantina), chamada D. Maria da Visitação, que então era a prioresa do seu convento, onde era tida por santa. De entre os que trataram o caso encontramos os autores mais díspares, desde os dominicanos Frei Luís de Granada (1504-1588) e Frei Luís de Sousa (1555-1632), que tentaram dourar a pílula e salvar a honra da sua Ordem, passando por romancistas históricos tão reputados como Camilo Castelo Branco e Agustina Bessa Luís (séculos XIX e XX), até aos memorialistas e historiadores de diversas gerações, como Pero Roiz Soares (séc. XVI-XVII), D. António Caetano de Sousa (XVII- -XVIII), Lúcio de Azevedo e Menéndez y Pelayo (XIX-XX), ou António Baião (XX). Com o presente artigo não pretendo de modo algum esgotar o tema, mas tão-só relançar sobre ele um novo olhar.

Não se pense, todavia, que este foi um caso único no género em Portugal. No auto da fé realizado no Terreiro do Paço a 14.12.1667, foi penitenciada pela Inquisição uma mulher que fingia visões místicas e que dizia ir à “Ilha Encantada” falar com el-rei D. Sebastião: foi a açoitar, com 5 anos de degredo para Angola. A 7.04.1721, no convento dominicano de Nª Srª da Oliva do Tojal (Sátão, Viseu), saiu penitenciada uma outra freira que fingia santidades. Em 1794, no último autorrealizado em Lisboa, saiu mais uma mulher com penas de açoites e degredo, também por se fingir santa. E até houve, de Abrantes, o caso de uma Ana Rodrigues Toupa, que foi sentenciada em 1682 em Lisboa por simular visões e ter tratos com o diabo, acabando degredada para Castro Marim. Isto para não falar de outros exemplos de mulheres condenadas por visionárias, impostoras, embusteiras, falsárias e outros “crimes” ... de fé.

Acabei de citar casos que tiveram a intervenção condenatória do Tribunal do Santo Ofício (da Inquisição), o qual foi extinto em Portugal no ano de 1821. Mas, como era de prever, não acabou aí a fonte dos “problemas”, que essa é, no fundo, a complexa mente humana. E basta lembrar, só da 1ª metade do século XX, com alegados êxtases e estigmatizações (embora com cambiantes diversificados), casos como os do Barrai, da Madre Virgínia da Paixão (no Funchal), ou das visionárias de Lamego1, da Covilhã, da Vergada, de Pereira de Avidagos (Mirandela), de Balasar (Póvoa de Varzim), do Pinheiro, de Baião, de Oriz (Minho, 1946) e de Vilar Chão (Srª Amália da Natividade Fontes, 1947)... Lá de fora, também os houve, embora menos frequentes ou talvez com outra conotação, como foram os casos das extáticas e estigmáticas alemãs Ana Catarina Emmerich (1812) e Teresa Neumann (1928), se bem que estas mereçam um tratamento diferenciado: a primeira foi já declarada Beata; e a segunda tem processo de beatificação em Roma.

E outras mais deve ter havido; e outras mais aparecerão, certamente. Conforme escreveu o Pe. Agostinho Veloso (1947), «A psicose do maravilhoso vem de longe. É uma tentação mais ou menos cíclica, principalmente em tempos anormais, quando a vida, na palavra justa de Vauvenargues, mais se vence do que se vive.» Enfim, serão os chamados sinais dos tempos. E, atenção, que agora mesmo estamos a atravessar um período bem complicado!...

UM POUCO DA HISTÓRIA DO CONVENTO

É da tradição que houve um primitivo Convento de Santa Maria [das Donas] e que este se situava em terreno da freguesia de S. João, «a começar da Travessa da Palma até ao fim da Rua Nova», abrangendo a largura que ia desta rua «à face oriental da Rua Grande». Em 1384 houve ali uma construção nova, ordenada por D. Fr. Vasco de Lamego, o bispo da Guarda que antes fora prior de S. João de Abrantes. A regra dada foi a de Cónegas Regrantes de Santo Agostinho, mas com declaração de que as freiras obedeceriam à administração do bispo e de seus sucessores. Com as pestes do tempo de D. Duarte, o mosteiro foi entrando em crise; até que em 1541, no dia de São Martinho, após curiosas peripécias e com licença do monarca e do papa, se deu uma viragem: passou à Ordem de S. Domingos, com o título «da Consolação», depois de “Santa Maria a Nova” ou “da Graça”. Como prioresa ficou a madre Isabel de S. Francisco, que era filha do Dr. Fernão Álvares d’Almeida, nobre ligado a Abrantes e que era chanceler-mor do Reino.

Não obstante a regular localização, as freiras queixavam-se de o lugar «ser muito doentio e sujeito a muitas vistas de muitas partes e sujeito a muitas águas», razão por que em breve trataram de proceder à construção de um novo mosteiro, em sítio mais arejado e saudável. O local escolhido seria na área periférica do Rossio, onde então havia uns inúteis “paços” dos bispos da Guarda e hoje se encontra o edifício do IPT-ESTA. Os trabalhos, que contaram com o apoio expresso do rei D. João III e da rainha D. Catarina, tiveram início a 26.07.1542, sob a direção do hábil mestre abrantino Pero Fernandes, e terminaram nos começos de 1548. E tão aprimorada ficou a obra, que o mestre diria ao rei que não havia na Ordem de S. Domingos «outra tão acabada nem tão nobre de oficinas». A transferência, definitiva, deu-se no dia 4 de agosto desse ano (dia de S. Domingos).

Seria um mosteiro de elites... Foi a própria rainha que ali criou 10 lugares para 10 religiosas, «que fossem filhas de homens nobres», devendo estes ter-se assinalado ao serviço da Coroa e do Reino. Para o efeito, determinava mais a rainha que ao convento fossem pagos todos os anos dos cofres do almoxarifado da vila, para sustentação das freiras, 300 mil réis de juro perpétuo, «e além disto 8000 réis para cada uma religiosa das sobreditas dez». Na verdade, ao longo da sua história, seria este um mosteiro sempre muito disputado pela nobreza, sobretudo pelos senhores locais (para colocação das suas filhas), aqui tendo florescido «muitas religiosas em virtude», segundo rezam as crónicas (veja- -se, quanto ao século XVI, o citado Fr. Luís de Sousa).

convento abrantino1

Aspeto geral do Convento da Graça, ainda bem integrado no conjunto.

Na coluna da direita, pormenor da foto anterior. Nesta segunda fotografia, em primeiro plano, à esquerda, a Casa do Capitão-mor, também demolida (onde hoje se situa a loja Mango).

Durou o convento até à morte da última prioresa, madre Maria Angélica Godinho, que faleceu a 4 de novembro de 1891. Com ela, ali viviam então mais oito mulheres, pupilas e criadas, cujas identidades são bem conhecidas: a mais velha, Maria José do Carmo Sanches, tinha 73 anos de idade e 57 de convento; a mais nova, Maria Flor Gonçalves Bastos, de 19 e 10 anos, respetivamente (faleceu em Lisboa, em 1894). Todas estas ficaram a receber um subsídio do Governo, de 65$000 réis cada. Igreja e convento foram de seguida cedidos à Câmara de Abrantes pelo decreto de 3.12.1891 e lei de 19.04.1892. O seu espólio, de elevado valor artístico, recolheu em grande parte ao “Museu das Artes” de Lisboa (mobiliário, pratas e tecidos), após o competente inventário; mas houve peças doadas à Santa Casa da Misericórdia (loiças, utensílios de doçaria e algumas roupas), e uma boa parte cedida ao desbarato.

Dos sete altares que a igreja tinha, dois laterais foram doados à Misericórdia, a 16.06.1897; dois colaterais foram encaminhados para a paroquial do Rossio ao Sul do Tejo (1898); um outro colateral foi oferecido à irmandade do Senhor dos Passos (1900); um retábulo do coro foi dado em 1899 à capela de Nª S.ra das Dores, da Ortiga. Quanto ao altar- -mor, que era uma preciosidade, foi posto em hasta pública a 6 de junho de 1900, sendo arrematado por José Martinho Charneca, de Lisboa, por201$500 réis (parece que dias depois já davam ao arrematante um conto de réis! - isto segundo o Eco do Tejo. A escritura para a demolição do que restava foi assinada a 23.10.1901, tendo-se a construção do novo edifício camarário iniciado pouco depois, com projeto do Arq.° José Maria Nepomuceno. Estava pronto em 1904, com espaço para Tribunal, Cadeia de comarca, etc..

Hoje, já ninguém dá por isso; mas o desaparecimento daquela joia do património abrantino constituiu naturalmente uma perda irreparável e foi na altura muito criticado pela imprensa local, que - com razão - assacava culpas ao executivo da Câmara e a Avelar Machado. A título de exemplo, sigamos este severo juízo, do semanário Eco do Tejo de 22.09.1901:

«Era uma obra prima da nossa história e da nossa vila, que o camartelo da camara deitou a terra sem scieneia nem consciência. E como se nào bastasse o vandalismo, só por si, para irritar os nervos de todo o homem bem organizado, foi necessário, para consumar a obra digna de um genio, enterrar n’ela o melhor de reis 25’000$000I, quando, com meia duzia de mil reis, se adaptava a repartições, retocava e fortalecia aquele edifício digno de que os presentes se descobrissem ante este vestígio epico do nosso passado. Nada d’isso. A camara sonhou com um chalet de minhoto brazileiro e substituir por ele a explendorosa nave da egreja, que dava o mais imponente tribunal que aos nossos olhos até hoje foi licito observar. Desgraçado vento de misérias que açoitou aquele intelectu empobrecido e cachetico!»

S.0R MARIA DA VISITAÇÃO - COMO NASCEU UM MITO

D. Maria de Meneses, de seu nome no século, nascera por volta de 1551 e era o 6º rebento advindo do casamento legítimo de D. Francisco Lobo e de D. Branca da Silva Meneses. Seu pai, comendador na Ordem de Cristo e que fora do Conselho de D. João III e embaixador ao imperador Carlos V (1539), era filho de D. Diogo Lobo da Silveira (2.° Barão de Alvito, pessoa de grande influência na corte de D. Manuel) e de D. Joana de Noronha (que era filha de D. João de Almeida e de D. Inês de Noronha, 2.°s condes e senhores de Abrantes); enquanto sua mãe era filha de D. Afonso Teles de Meneses (5.° alcaide-mor de Campo Maior) e de D. Isabel de Ataíde (filha de Francisco de Goes, alcaide-mor de Serpa, e de D. Branca de Sousa). Portanto, tudo gente graúda!...

Sim. Ela trazia nas veias sangue real, pois descendia, pelo costado paterno da ilustríssima Casa de Abrantes (entre outras), e, pelo materno, das altas estirpes dos Teles de Meneses, condes de Viana e de Vila Real, ligados por vínculos diversos a outras grandes Casas, incluindo a realeza. Aliás, as duas linhas ou costados haviam-se cruzado diversas vezes: dos Teles de Meneses procedia, entre outros, D. Afonso de Vasconcelos de Meneses, 1º conde de Penela (1441-1480), casado com D. Isabel da Silva, que era filha dos 1ºs Condes de Abrantes. Quanto aos muitos irmãos, contavam-se entre eles nomes como D. Manuel Lobo (alcaide-mor de Campo Maior e que viria a perecer com D. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir), D. Diogo Lobo (que serviu com reputação na índia e em Malaca entre 1571 e 1599), D. Afonso Lobo (que também serviu na índia) e D. Isabel de Meneses (= Clemência de Jesus, religiosa no convento da Madre de Deus, t1616)6.

Tendo ficado órfã de tenra idade, entrou para o mosteiro da Anunciada em Lisboa pelos 11 anos, professando aos 17 (como Soror = irmã) e chegando a prioresa/prelada por volta dos 31/32. Esse mosteiro tivera, aliás, uma origem interessante, pois ao ser fundado em 1519 (embora noutro local) pelo rei Venturoso, após solicitação ao papa Leão X, ficou logo com uma forte ligação a Abrantes: três das primeiras freiras nele entradas, vindas do famoso Convento de Aveiro, eram da família Almeida, a saber: 1 - D. Joana da Silva, a 1ª prioresa, que era filha do 1ºs Condes de Penela (os já citados D. Afonso Vasconcelos e Meneses e D. Isabel da Silva) e neta materna dos 1ºs condes de Abrantes; 2 - D. Brites de Meneses, que era filha do 2.° Conde de Penela; e 3 - D. Brites de Noronha, que era filha dos 2.°s Condes de Abrantes, D. João de Almeida e D. Inês de Noronha.

Quanto ao referido mosteiro da Anunciada, já hoje não existe, pois ficou queimado e inutilizado pelo megassismo de 1755, mas ainda existe o Largo da Anunciada, ao fundo da antiga Corredoura [hoje Rua das Portas de Santo Antão - um nome que evoca um primitivo cenóbio de Agostinhos Descalços de S.to Antão, que ali houve antes da chegada das freiras domínicas da Anunciada]. Relativamente à figura de S.or Maria da Visitação, sabe- -se que era uma freira dotada de rara beleza e inteligente. Ansiando tornar-se prioresa e famosa, começou a dizer que tinha visões místicas e a criar fama de santidade, sobretudo ao asseverar que Cristo lhe tinha transmitido os estigmas da coroa de espinhos (na cabeça) e da chaga do lado - esta ao que parece desde 1578 (por volta de 24 de junho), quando D. Sebastião se lançou à Jornada de África.

Após a desastrosa batalha de Alcácer Quibir, onde o monarca desapareceu e também morreu um irmão da religiosa, esta foi-se tornando cada vez mais conhecida, dando num certo dia de 1584 em mostrar as restantes chagas (das mãos e pés) e em anunciar ou vaticinar que o Desejado havia de voltar, não numa manhã de nevoeiro, mas num dia litúrgico de... S. Domingos, o padroeiro do seu convento (que por sinal se chamava da Anunciada). Era, de facto, um ambiente propício à propagação do fenómeno, logo surgindo quem lhe atribuísse «muitos e grandes milagres e que a viam estar no ar orando na sua cela e com grandes claridades»7...

Mas demos a palavra a um insuspeito dominicano, cronista coevo e idóneo, Fr. Luís de Sousa, que na sua História de S. Domingos, Parte III do vol. III, cap. XI, nos deu um belo testemunho dos factos: «De um estranho e calamitoso sucesso que neste mosteiro [da Anunciada - Lisboa] se viu em uma religiosa I Soror Maria da Visitação]. É curiosa a introdução:

Saibão as Freiras de S. Domingos em Portugal,

e saiba-o embora [em boa hora] o mundo

todo, que para se humilharem as muitas e boas

que n’ele ha, e todas viverem acauteladas,

permitio Deos a ilusào de huma fraca e

presuntuosa, que passou assim.

 

Começa depois por narrar que Maria da Visitação assim era chamada, por ter tomado o nome do dia e festa em que vestiu o hábito (num 8 de julho). Depois que fez profissão, era singela, humilde, despretensiosa, «nenhum trato fora de casa, recolhimento, silêncio e honestidade». A bem dizer, «Tudo bom — escreveu Frei Luís — mas natural somente porque não procedia, nem tinha raiz no coração (como depois se viu)» ...

Já cahia em raptos e extasis, já contava revelações. Passarão anos, negociou de novo fogo na cela e luzes no coro, que fazia crer serem celestiaes. Chegou a mostrar a cabeça ferida, certificando que o Esposo (assim chamava sempre a Christo) lhe comunicara a honra e efeito de sua Coroa de Espinhos, e era crida em tudo. Porque além de ser facil de enganar com a virtude toda a gente virtuosa, que sempre houve muita nesta Casa, tinha Soror Maria sobre os mais dotes da natureza, hum semblante amavel, acompanhado de tal geito e brandura, que criava nos ânimos de quem a via respeito e afeição. (...) Inda não tinha quatorze anos de profissão, já por toda a Cidade e Reino era

nomeada como cousa cahida do Ceo, a Freira d’Anunciada; e as Freiras todas tão enfeitiçadas com ela que, nos quatorze anos de professa e não tendo mais que trinta e hum de idade, a fizeram Prioresa Feita Prelada, eis que em dia de Santo Thomas 7 de Março do ano de 1584 sahe com nova maravilha: publica que na mesma noite lhe dera

o Esposo suas santíssimas Chagas, mostra as mãos, e nelas os sinais. Como tinha tão fundada sua reputação, não só foi crida, mas recebido o caso com universal alegria e veneração. Chegou a El-Rei, e passou ao Papa, correo por toda a Cristandade. Acudiam de toda a parte, como a gente portuguesa he tão pia, ofertas grossas e muitas, que enriqueciam a Casa (...). N’este estado, que era o maia alto que podia ser para soror Mana, de nome e credito, e para a Casa de honra e proveito, mostraram as Religiosas

mais importantes d’ela o zelo, que sempre houve da Religião verdadeira e honra de Deos.

Porém, decorrido algum tempo...começarão [algumas religiosas] a fazer escrúpulo do que viam, obrigadas de sua consciência (...) Passarão a considerar as suas

cousas profundamente, e vieram a achar n’elas tais contradições que assentarão serem as chagas pintadas, e pelo conseguinte, tudo o que mais se dizia [era] falso e fingido.

Seriam, porventura, desconfianças e invejas de companheiras ressabiadas (?!)... O fenómeno continuava a desenvolver-se e a propagar-se. Havia então, tanto em Portugal como lá fora, quem tivesse em grande veneração relíquias suas e quadros em que ela era figurada. Contava-se mais que um nobre, Duarte de Lemos, que era senhor da Trofa do Vouga (Águeda) estando condenado à morte por haver seguido o Prior do Crato, fora liberto devido à sua intercessão; e que grandes fidalgos do reino, incluindo o Cardeal- -arquiduque Alberto d’Áustria [vice-rei em Lisboa, sobrinho do monarca], a visitavam; e que até o papa [Sixto VI e o próprio rei se lhe haviam dirigido por carta. Eis o testemunho coevo de outro autor, Pero Roiz Soares:

«Não avia pessoa que não acodisse a Lisboa a ver a freira santa e aquele ou aquela que tinha maneira ou ordem para a ver ou falar com ela se tinha pela mais ditosa do mundo. E eram os senhores de todo o mundo tantos que concorriáo a vi-la ver, que era espanto; e qualquer príncipe ou senhor que dela alcançava carta ou cousa sua a trazia por muito grande relíquia ao pescosso, e Elrei e a Emperatriz e o Papa em Roma faziam quanto lhe ela mandava pedir; e ajuntou neste tempo muitas e mui grandes riquezas para o Mosteiro, e de França estavam abalados muitos senhores e donas ilustres para a virem ver; e de lá e de toda a cristandade lhe mandavam mil peças e ela nada engeitava, concorrendo o concurso de toda a monarquia d’Espanha a vila ver. E ela mostrava as chagas das mãos a muitos e os milagres que fingia eram tantos que espantavão e logo se escreviam por todo o mundo».

Enfim, chegou a tal ponto a aura de profetiza e milagreira da Freira, dentro e fora do reino, que de muitas partes afluíam pedidos de intercessão e se disputavam relíquias suas. Em 1586, publicava-se em Paris, na Tipografia de Jean Besant, um livro sensacional: «Os grandes milagres e santíssimas Chagas que a veneranda Madre Prioresa recebeu este ano de 1586, na cidade de Lisboa, no reino de Portugal, da Ordem dos frades pregadores, aprovados pelo reverendo Frei Luís de Granada e outras pessoas dignas de fé.... Nos começos de 1587 veio expressamente de Paris a Lisboa para se avistar com ela um sebastianista, dissidente do grupo de D. António, chamado Santos Pais; e antes da partida da Invencível Armada, em Maio de 1588, foi-lhe levada a bandeira de Gaspar de Sousa, capitão dos portugueses, e logo após outras bandeiras de outros capitães - em que se incluiria o próprio estandarte real - para que ela os abençoasse e implorasse a vitória do rei Católico [Filipe II] contra a Inglaterra protestante.

Mas continuemos a ouvir um pouco mais do que sobre o «estranho e calamitoso sucesso» nos conta o cronista Frei Luís de Sousa. Parecia - explica ele - «que tudo estava

conjurado em favor da cegueira». De facto, chegou por esses agitados tempos a Portugal, por vigário geral da Província (dominicana), o Padre Mestre Frei Alberto Agayo, castelhano que «era homem de peito» e julgava-se que decidiria a coisa de vez, depois de ouvir as denunciantes (outubro de 1587). Afinal, apesar dos «terrores e ameaços» com que entrou, e «tendo prestes todo o necessário para o lavatório» I das pretensas partes chagadas da Freira], acabou por sair de mansinho «sem fazer nada», só de ver e ouvir a prioresa S.or Maria da Visitação «à grade da Comunhão». Que grande poder de encantamento ela teria!...

Então, Soror Maria saiu-se com uma outra habilidade eminentemente feminina. Como, no convento de S. Domingos, vivesse Frei Luís de Granada, homem bom e muito respeitado, conquanto decrépito, quase cego e já com 83 anos de idade, a Prioresa mandou-o chamar, para que «quisesse ele fazer a experiência, que o Vigário Geral não fizera». Bem sabia ela que, em tais condições, o bondoso e alquebrado frade seria fácil de enganar e que, tendo justa fama de Santo, o seu parecer havia de pesar naquelas circunstâncias e ajudar a desfazer as suspeições, que na verdade tendiam a generalizar-se. Ele acedeu. Resultado: «Juntou-se sua virtude grande com a que cuidava que havia em Soror Maria; e, com as dores que ela soube contrafazer incomportáveis; de maneira fez o exame que, para com gente de entendimento, não fez nada; e, para com o povo, ficou Soror Maria mais acreditada».

Sobreveio depois o Geral da Ordem, Pe. Xisto Fabri de Luca, e desta feita, requerido das madres zelosas (as mais desconfiadas) e informado do que se passava, tratou de fazer também o seu exame. Foi nos começos de dezembro de 1587. Sigamos uma vez mais o cronista: «Começando o lavatório, acolheu-se Soror Maria às armas mulheris; correram rios de lagrimas, palavras, e gritos significadores de dores imensas, e tais que, sendo falsas, quebraram o coração ao bom Padre com dor verdadeira». E, talvez lembrado das Chagas verdadeiras de Cristo Redentor, parecendo-lhe «que fazia ofício de tyrano contra huma donzela inocente e santa», desistiu da obra, «tornou- -se para Roma, deixando-a cheia de favores e honras, e carregadas de novos preceitos e penas as procuradoras da verdade». «Assim - remata o cronista - ficou vitoriosa a mentira e autorizado de novo o engano».

A QUEDA DO MITO E O DESTERRO PARA ABRANTES

O ano de 1588 revelou-se, tanto para Portugal como para Espanha, um annushorribilis, sobretudo por força da estrondosa derrota daquela que ficou conhecida por Invencível Armada e que passava por ser a esquadra mais poderosa de toda a Idade Moderna. Envolveu esta 130 naus, mais de 30 mil homens, boa parte dos quais portugueses, que se faziam acompanhar de muita riqueza e reserva de mantimentos para meio ano. Recordemos que, antes da sua largada do Tejo (Belém), a 27 de maio, a própria prioresa da Anunciada benzeu as bandeiras e estandartes luso-espanhóis e implorou para as suas cores a vitória ibérica. Os combates navais travaram-se junto às costas da Inglaterra durante cerca de uma semana e decidiram-se a 7 de agosto, tendo redundado, como é sabido, na destruição quase total das forças filipinas, com grandes perdas portuguesas.

Afinal... a Invencível foi mesmo vencida, inapelavelmente. A Freira não terá tido nisso culpa alguma. Mas o certo é que o seu nome não deixou de ser lembrado e associado na hora do descalabro. Acusavam-na agora de falsa e de conspiradora, porque alimentava ideias messiânicas ou geradoras de sebastianismo e protegia adeptos de D. António (ex-Prior do Crato). No convento, as suas inimigas também souberam explorar a situação, redobrando as denúncias que já se vinham desenvolvendo antes. Com efeito, em junho, uma criada mais atrevida (Violante de Abreu), decerto acobertada com as freiras conspiradoras, tratou de fazer na cela da prioresa um buraco, que logo disfarçou com cera amarela; e, escolhendo a melhor oportunidade, foi através dele que espreitou o embuste: a prioresa a pintar as mãos e a simular chagas...

Era a prova provada. Ouvindo as denunciantes, o confessor do convento (Pe. Paulo de Pina) logo se apressou a comunicar os factos ao inquisidor do Santo Ofício (Pe. Jorge Serrão, de S. Roque), e este ao inquisidor geral e governador do reino (Cardeal Alberto). De imediato este ordenou o processo e escolheu os instrutores, que eram do mais alto nível (com inclusão dos arcebispos de Lisboa e de Braga) e que logo começaram os interrogatórios no convento, a 11 de agosto, ou seja, apenas quatro dias após a derrota da Invencível. Durante mais de um mês, os inquisidores ouviram dezenas de depoimentos, pró e contra, e fizeram as mais diversas diligências. «Foia última — refere Frei Luís de Sousa — um pouco de sabão, que brevemente fez desaparecer tinta e vernizes, ficando as mãos lizas e sem outra cor nem sinal». Desmascarada, a freira confessou tudo, coisa que — relata com ironia o cronista — «já não era necessária».

Não se pense, contudo, que foi um processo fácil. Dada a dimensão que o escândalo atingira, foi longo e complexo, com audição de todo o convento, mais de meia centena de pessoas, incluindo a ré (muitas vezes), a sua escrava negra, as serventes, o aguadeiro, o iluminador Domingos Monteiro, o pintor luso- -espanhol Fernão Gomes (que lhe facultou algumas tintas)... Foi também conferido e experimentado o buraco da cela, por onde havia sido espreitado o embuste. Nada escapou à devassa. No final, porém, já não havia qualquer margem para dúvidas. E ela, sumamente envergonhada, prostrada no chão e desfeita em lágrimas, acabou por confessar que mentira e falsificara. Os sinais da cabeça fizera-os com a ponta de um canivete; para a chaga do lado usava tinta vermelha e sangue seu que tirava de um dedo, com ajuda do canivete; as dos pés e mãos eram também pintadas, sendo depois fixadas com vernizes. Quanto às “claridades”, saíam de um escondido fogareirinho de brasas, que ela ia soprando; para os “arroubos” ou “levantamentos”, utilizava uns chapins; e quanto às “revelações divinas”, eram de todo falsas, incluindo aquela em que disse ver um anjo a tirar el-rei D. Sebastião da batalha, pelos cabelos, e pô-lo além do rio...

Enfim, para desilusão de imensos crentes, foi a derrocada do mito. O Cardeal logo ordenou que fosse destituída da prelazia e ficasse presa no mosteiro, incomunicável. A 2 de Novembro, nova ordem, para a abadessa da Madre de Deus a receber em Xabregas. Para lá seguiu, efetivamente, no dia seguinte, pelas 4 da madrugada, acompanhada de uma sua tia viúva (D. Leonor). A 4 e 5, novos interrogatórios para apurar acerca de eventuais cúmplices. A sentença final do Cardeal foi publicada a 6 de dezembro, na igreja da Madre de Deus, à grade da tribuna, na presença da ré, dos inquisidores e de todas as religiosas do mosteiro. A 8, foi a mesma lida e publicada na sé de Lisboa, estando presentes o Arcebispo, alguns bispos e todo o cabido, quatro religiosos de cada mosteiro e toda a gente do povo que coube no templo. Igualmente se apregoou nos capítulos da Anunciada e de S. Domingos, enquanto no convento dela tinha lugar um auto da fé, em que a ex-prioresa saía penitenciada. A 10, foi a sentença mandada publicar em todas as igrejas, ao mesmo tempo que todas as suas “relíquias” eram mandadas recolher.

O que dizia, afinal, a sentença?

Segundo Fr. Luís de Sousa, incluía «várias penas, e todas leves: porque se não achou no caso mais pecado que fingimento humano. A maior pena foi desterro do seu Mosteiro para outro da Ordem, que foi o d’Abrantes». Mas não foi bem assim. Senão vejamos alguns dos castigos, bem humilhantes, que lhe foram aplicados:

«(...) que perpetuamente não possa servir cargo algum na religião; que lhe seja tirado o véu preto da profissão e que perca sua antiguidade; que seja condenada em cárcere perpétuo em um mosteiro de religiosas da sua Ordem fora de Lisboa, cárcere onde terá uma cela da qual não sairá senão a ouvir missa do dia e às quartas e sextas de cada semana ao capítulo para nele receber uma disciplina, e nos mesmos dias jejuará a pão e água, e comerá no refeitório em terra, fazendo à entrada e saída as prostrações acostumadas na Ordem, para que passem as outras religiosas por cima dela, e o remanescente do seu comer se não misturará com o das outras; e não receberá cartas, nem visitações de fora, nem falará com mais religiosas que com aquelas que a prioresa lhe nomear (...); e que o retrato dela, em que está pintada com as chagas no capítulo da Anunciada, se tire e apague, de maneira que pareça que nunca ali esteve, e o mesmo se faça em todas as partes onde estiver o seu retrato, e se recolham todos os livros e papéis que dela tratam e os autos dos milagres (...)»

O desterro para Abrantes cumpriu-se, efetivamente, a partir do dia 10 de dezembro de 1588. Para o efeito cometeram a um fidalgo da Casa Real, João de Saldanha (de Santarém), e a sua mulher, D. Lourença de Távora, o encargo de a conduzir e tomar conta dela, metendo-a numas andas, com proibição de dirigir palavra a pessoa alguma. O percurso, desde Xabregas, fez-se por Vialonga, Alhandra, Vila Franca de Xira (onde pernoitou) e Santarém (onde se demorou 4 a 5 dias, na Quinta da Azinhaga, pertença do dito casal), sendo por vezes alvo da curiosidade e simpatia popular. Houve até quem lhe pedisse bênçãos e lhe atribuísse mais alguns milagres, como cura de doentes. João de Saldanha, por exemplo, teria chegado a opinar que a tinha por «mais santa que nunca», por lhe ter curado a esposa, o que chegou aos ouvidos da Inquisição e gerou mais inquéritos.

Por fim, discretamente, cá deu ela entrada no convento dominicano de Nª Srª da Graça, onde ficou enclausurada, sob apertada vigilância e com as penitências impostas. Ainda assim, consta que o derrotado Filipe II de Espanha (I de Portugal), agastado com o monumental logro e talvez desagradado com alguma benevolência do sobrinho Cardeal e Inquisidor para com a ré, terá chegado ao ponto de determinar a substituição deste à frente do governo de Lisboa, o que só teria sido evitado pela opinião contrária dos conselheiros portugueses de Madrid, que viam com apreensão a sua saída precipitada da capital portuguesa. Curiosa foi também a evolução posterior do Convento da Anunciada, onde a ex-prioresa deixou saudade em algumas madres (p. ex.: Violante do Presépio (sub-prioresa), Beatriz Baptista, Ana de Santa Maria e outras), e onde ao invés triunfaram as opositoras (ligadas ao clã do padroeiro, o Conde de Linhares), capitaneadas pela “intriguista- -mor” S.or Margarida de S. Paulo, que viria a ser eleita prelada por quatro vezes.

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Fachada do Convento da Graça (reconstituição feita pelo Dr. Rogério Ribeiro

A NOVA VIDA CONVENTUAL (EM ABRANTES)

Não obstante a vida em clausura e aqui se encontrar completamente isolada do mundo, com as ditas penas, mantinham os inquisidores, apesar de tudo, uma leve suspeita: a quem teria obedecido ela, já que não lhe haviam sido detetados cúmplices? Foi por isso que a não largaram em definitivo e ainda continuaram por algum tempo as averiguações. Da pouca documentação existente, descobrimos que, a 15 de março de 1589, foi ela novamente interrogada por um delegado da Inquisição, António Dias Cardoso, que fez também de escrivão, tendo por base um conjunto de questões previamente elaboradas pelos inquisidores Paulo Afonso, Jorge Serrão e António de Mendonça. Constam estas do mesmo processo inquisitorial (adiante transcrito parcialmente). No final do questionário, à parte, anotaram mais os seguintes tópicos de inquérito:

“Há informação que Maria da Visitação, estando em casa de João de Saldanha, teve dous raptos, a que estiveram presentes o padre guardião de Vai de Figueira e frey Domingos, padre de Sam Domingos, o qual a mandou per obediência que despertasse. E deviam também estar presentes João de Saldanha e sua mulher e algumas outras pessoas de casa; todos estes se hão-de perguntar. E saber-se do sr. Bispo da Guarda algumas cousas que sabe da ditta Maria da Visitação e outras que ouvio dizer a certa pessoa. Há-se de tirar por testemunha Pero Anriquez, o das comendas, sobre as palavras que ouvio dizer a João de Saldanha sobre a dita prioresa, dizendo que a Inquisição podia dizer o que quisesse, mas que a verdade era que Maria da Visitação era oje em dia huma grande santa e que fizera vinte e tantos milagres”.

Contudo, analisado o processo, não encontrei nele declarações destas pessoas. Apenas no inquérito à ré se deteta alusão aos supostos “raptos” (arrebatamentos ou êxtases), o que ela negou ter tido. Quase todas as religiosas que habitavam o convento de Abrantes foram ouvidas pelo sobredito delegado da Inquisição, a começar pela própria visada e pela prioresa. Os principais depoimentos seguem no Apêndice Documental, por sinal todos concordantes no bom comportamento da religiosa. Através deles poderemos também conhecer a identidade de todos os membros que então integravam e habitavam o convento. Eram as freiras seguintes:

  • Soror Catarina da Cruz, rodeira, de mais ou menos 55 anos;
  • Soror Maria de São João, mestra das noviças, de mais ou menos 80 anos;
  • Soror Maria do Salvador, porteira, de mais ou menos 70 anos;
  • Soror Aldonça de Jesus, porteira em exercício, de mais ou menos 47 anos (t 1597);
  • Soror Francisca da Cruz, freira professa, de mais ou menos 54 anos;
  • Soror Maria do Espírito Santo, professa e gradeira, de mais ou menos 50 anos;
  • Soror Maria de Jesus, professa e porteira, de mais ou menos 40 anos;
  • Soror Ana da Madre de Deus, professa, de mais ou menos 25 anos.

Mais. De acordo com o mesmo processo, apura-se que cumpriu a freira escrupulosamente todos os mandados, sempre com a maior resignação - sendo caso para dizer que então sim, se tornou santa - pelo que, a 25.6.1591, a pedido da comunidade ao monarca, deram em afrouxar os rigores: começaram por autorizar-lhe a comunhão ao mesmo tempo que as demais. A 3.4.1592, foi dispensada dos jejuns e prostrações. E a 8 de novembro de 1594, a então prioresa, Soror Aldonça de Jesus, podia escrever ao rei:

«O Príncipe Cardeal, nosso senhor, mandou para esta casa sóror Maria da Visitação, para nela fazer as penitências que lhe foram dadas, as quase ela tem cumprido e faz com muito exemplo de toda esta comunidade e mostra de arrependimento e humildade e não tem faltado em cousa alguma das que lhe foram mandadas e há seis anos que as continua, não tendo um dia de saúde. Por algumas vezes pediu esta comunidade a Sua Alteza; ele lhe fez mercê e a nós de lhe levantar algumas das penitências. Agora pedimos a Vossa Majestade nos alcance a dispensação de todas as mães penitências que lhe ficaram respeitando a andar já muito fraca e doente e haver já seis anos que as continua com tão grande penitência e humildade que a todos nos edifica».

Esta petição só parcialmente seria atendida, por despacho de 3.02.1595: a freira foi dispensada das medidas disciplinares impostas às quartas e sextas-feiras, ficando autorizada a falar com todas as religiosas. Continuava, no entanto, com bastantes restrições, designadamente quanto à forma de trajar e no plano das relações pessoais. Só em 1603 (a 3 de março), por sentença do Inquisidor-geral (D. Alexandre), obteria dispensa do véu preto e recuperaria a sua antiguidade, podendo passar a falar e escrever a pessoas religiosas (de que não houvesse escândalo!).

Desconheço quando e como faleceu, sendo certo que, conforme ao testemunho insuspeito do cronista (Frei Luís de Sousa), foi em Abrantes: «(...) onde viveu alguns annos, e faleceo cumprindo suas penitencias». Poderá ter entregue a alma a Deus ao longo da década de 1610 - portanto há cerca de 400 anos - e deve ter sido sepultada no claustro. Seria interessante sabê-lo, porque, se uma pecadora arrependida pode ganhar a santidade, então Soror Maria da Visitação até poderia pelo seu exemplo alcançá-la. Ou, pelo menos, a reabilitação perante a História.

BIBLIOGRAFIA

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- BAIÃO, António, Homenagem a Camilo no seu Centenário (1825-1925), livro que integra, no último capítulo, «O romance de Camilo “A freira que fazia chagas” e o respectivo processo inquisitorial», Coimbra, 1925, pp. 69-195.

- CASTELO BRANCO, Camilo, As virtudes antigas, ou a Freira que fazia chagas, e o frade que fazia reis; um poeta portuguez... rico!, s/ d (c.l865,2.aed. 1904).

- DANEMARIE, Jeanne, Le mystère des sti- gmatizes:De Catherine Emmerich à Therèse Newmann, Ed. Bernard Grasset, 1933.

- GRANADA, Fr. Luís de, Historia de S.or Maria dela VisitaciónySermón de las caídas públicas, ed. de Juan Flores, Barcelona, 1962, com Introdução de Álvaro Huerga.

- LUÍS, Agustina Bessa, A Monja de Lisboa, Guimarães Edit., Lisboa, 1985. Sobre esta obra existe na BNP uma tese de mestrado, de Maria Zélia S. T. Tavares de Oliveira, O discurso moralizante no romance A Monja de Lisboa’, Univ. Aberta, Lisboa, 2000.

- MENÉNDEZ Y PELAYO, Marcelino, Historia de los Heterodoxos Espaholes, t. V Madrid, 1928 (l.aed. 1880).

- SILVA, Joaquim Candeias, “Lembranças do Património Artístico de Abrantes Desaparecido - O Convento da Graça”, Jornal de Alferrarede, 1994, Nov. (p. 10) e Dez. (pp. 15 a 18); e

- Abrantes - A vila e seu termo no tempo dos Filipes (1580-1640), Edições Colibri, Lisboa, 2000.

-SOARES, Pero Roiz, Memorial de..., ed. Univ. Coimbra, 1953.

-SOUSA, Fr. Luís de, História de S. Domingos, ed. Lello & Irmão, 1977 . Foi seguida aqui a edição de Lisboa, 1866 (vol. IV parte III, cap. XI, p. 66-72).

- VELOSO, Pe. Agostinho, «A Mística e a Medicina», Brotéria, Janeiro de 1942, p. 82-86, e «Mística e Jornalismo», Ibidem, Janeiro de 1947.

-http://www.geneall.net/P/per_page.php?id= 458341 = D. Maria da Visitação

APÊNDICE DOCUMENTAL

Doc.° n.° 1

Abrantes - 1589, 15 de Março

“Exame” de Soror Maria da Visitação, feito no Convento de N.a Sr.a da Graça, em Abrantes, por um representante da Inquisição

AN/TT, Inquisição de Lisboa, Apartados, 20, n.° 11 894

Aos quinze dias do mês de Março de mil e quinhentos e oitenta e nove, em a vila de Abrantes, à grade do convento de Nossa Senhora da Graça das religiosas de São Domingos, pareceu, sendo chamada, Maria da Visitação, prioresa que foi do mosteiro da Anunciada da cidade de Lisboa, e pera em todo dizer verdade lhe foi dado juramento dos Santos Evangelhos, em que pôs a mão e prometeu dizer verdade.

Perguntada se está lembrada de algumas cousas mais acerca de suas culpas que aja de confessar, disse que nhuma cousa lhe ficou por dizer.

Perguntada se he verdade que ao tempo que se lhe fez o exame nos sinaes das chagas, sendo chamada à Mesa do Santo Oficio, trazia consigo metidos no peito huns corporaes bentos e pera que efeito os trazia, disse que por lhe dizer Brites Baptista que lera em hum livro que pera os trabalhos e perigos era bom trazer comsigo hum corporal, a dita Brites Baptista pedio à sachristã da Anunciada o dito corporal pera ela declarante, o qual levou consigo ao tempo do dito exame e despois quando se partio do dito mosteiro da Anunciada o trouxe também comsigo.

Perguntada, disse que ela não trazia o dito corporal continuamente, mas quando se via em algum aperto.

Perguntada se lhe ensinou outra alguma pessoa que trouxesse o dito corporal, ou lhe disse que tinha alguma virtude, ou ela declarante o trazia pera lhe quererem bem e se afeiçoarem as pessoas às suas cousas, disse que nhuma outra pessoa lhe falou nisto mais que a dita Brites Baptista nem o trazia por outro algum respeito mais que o que tem dito.

Perguntada se estando no mosteiro da Madre de Deus trazia o  dito corporal de dia e de noite o punha debaixo da cabeceira, ou fez isto neste convento, e se he verdade que tomando-lhe certa religiosa no dito mosteiro da Madre de Deus o dito corporal da cabeceira secretamente e não o achando pela manhã ela declarante se sentio muito disso fazendo taes extremos tee que lho tornaram a dar, disse que entrando na Madre Deos o levava consigo e as primeiras noites o pos debaixo da cabeceira por não ter onde o guardar e despois o meteo em hum escritório, e que quando se quis vir soror Clemencia de Jesus, sua irmã, andava revolvendo o fato do dito escritório e ela declarante perguntou pelo dito corporal dizendo-lhe que atentasse que estava no dito escritório e o não misturasse com outra roupa; e a dita soror Clemencia lhe disse que o não vira no dito escritório e despois revolvendo o achou, e que nisto não passou outra cousa.

Perguntada, disse que ela declarante deu o dito corporal à madre prioresa desta casa pedindo-lho, e dantes ja o tinha oferecido à sachristã, e por ser pequeno o não aceitou; e juntamente deu à dita prioresa hum evangelho de São João escrito de letra de forma, que trazia, dos que as freiras de Nossa Senhora da Gloria dão comummente, e que em o trazer não teve tenção nhuma, somente por o ver trazer a outras pessoas e ser evangelho de São João; e que quando a dita prioresa lhe pedio o corporal lhe disse ella declarante que era muito honrada pera ser feiticeira.

Perguntada se quando vinha por caminho pera este convento de Abrantes escreveo algumas cartas das mesmas andas, e hia lendo outras que recebeo, e a que pessoas escreveo, e de quem recebeo cartas ou recados, disse que, por lhe dizer o secretario da Inquisiçam ao tempo que  se queria partir da Madre de Deos que por caminho podia falar e não se entendia o que dizia a sentença, enquanto caminhava, ela confessante lhe pareceo que podia escrever licitamente: e por esta causa, estando na quinta de João de Saldanha, escreveo à suprioresa do mosteiro da Anunciada, que se chama Violante do Presepe, e a Maria dos Reis e a Brites Baptista e a Maria de São Paulo, religiosas do dito mosteiro da Anunciada, e a Joana Baptista, sobrinha dela confessante, freira do Rosairo, e a dona Mariana. que mora junto ao mosteiro da Anunciada e não se lembra do nome do marido; e que se lembra que, estando na mesma quinta, recebeo respostas das ditas cartas das pessoas pera quem ela as mandava; e não vio outro recado algum mais que o seu fato, que lhe foi entregue na quinta por ordem do provincial.

Perguntada quantos dias esteve em casa de João de Saldanha e porque causa e com cuja licença se deteve, sendo-lhe mandado por parte de Sua Alteza que se não detivesse, disse que Dona Lourença, molher do dito João de Saldanha, lhe dissera que tinha licença do padre provincial pera estar na dita quinta dous pares de dias e nela estiveráo ate cinco dias, e essa foi a causa de sua detença.

Perguntada se despois de lhe ser publicada sua sentença e publicado que não eráo miraculosas as obras que fazia, e que os sinaes das chagas erão pintados, pedindo-lhe certa pessoa que tinha hum acidente de dores que lhe pusesse a mão na parte que lhe doya ela o fez assi e cessou logo a dor, e se sabe que causas ouve pera isso, e se lançou a bênção a alguma pessoa ou pessoas como pera que dava a entender que tinha alguma virtude pera isso, disse que estando na quinta de João de Saldanha em huma noite, se queixou muito a dita Dona Lourença de huma grande dor de estamago que padecia, e vendo-se sem paciência se foi a casa onde ella confessante dormia, que era junto com a sua, e dizendo-lhe que não sabia que fizesse que a encomendasse a Deos, ela confessante se compadeceo de seu trabalho e a chegou pera si e que bem pode ser que lhe posesse a mão por ela lhe mostrar onde lhe doya, e logo lhe disse a dita Dona Lourença que lhe cessara a dor e o mesmo lhe tornou a dizer pela menhã, mas que ela confessante fez o sobredito como qualquer outra molher, por aver do dela, e que nisso não ouve outro respeito algum; e que não he lembrada deitar a bênção a pessoa alguma, nem pedirem-lha.

Foi-lhe dito que ha informação que, estando ela confessante em certa companhia, huma pessoa dos que estavam presentes lhe pedio que lhe deitasse a bênção do padre São Domingos e ela lha deitou; respondeo que nunca tal passou.

Perguntada se no caminho antes de chegar a esta vila de Abrantes se enlevou e arrebatou diante de certas pessoas e não despertou senão mandando-lhe certo religioso que ali se achou por obediência que despertasse, disse que não fez nada do contheudo na pergunta, e que estando na quinta de João de Saldanha por espaço de dous dias andou como enjoada das andas em que vinha, e que se lhe atribuirão isto a rapto, que foi falso, porque ela o não teve.

Foi-lhe dito que veja o que diz, porque ha informação que estando na dita quinta em companhia de certas pessoas seculares e religiosos, tratando-se da fermosura de Christo, em tempo que estavão vendo certas imagens, ela confessante se arrebatou por grande espaço, ficando com a cabeça sobre a mão e não despertou senão mandando-lho certo religioso por obediência; disse que tem dita a verdade H e que entende que podia estar esvaecida da cabeça pelo dito respeito e que fecharia os olhos e dahi colegirião que tinha rapto, mas que a verdade he que nunca lhe isto passou pela imaginação.

Perguntada, disse que despois de estar neste convento nunca escreveo carta nem mandou recado a pessoa alguma secular ou religiosa de fora dele, nem recebeo recado nem carta alguma das ditas pessoas, nem de Brites Baptista, freira da Anunciada.

Perguntada se despois de estar neste convento cumpre inteiramente sua penitencia como lhe foi mandado em sua sentença, não saindo do seu cárcere senão a ouvir a missa, nem falando com mais pessoas das que lhe forão assignadas pela prioresa, disse que ate’gora tem cumprido e cumpre com a dita penitencia como lhe está mandado e somente quando se recolhe ao dormitorio, que está junto com o coro, entra no dito choro a fazer oração, e também faz o mesmo pela menhã antes que se venha pera o seu cárcere, e que ouve as pregações das missas do dia, e aos domingos à tarde da coresma vay ouvir os sermões escondidamente sem a prioresa o saber e logo se torna, e que também a vão buscar à cela outras religiosas desta casa escondidas da prioresa e falão com ela parecendo-lhes que nisso lhe dão consolação.

Perguntada se despois de partir de Lisboa deu a entender a alguma pessoa que ainda avia de tornar com honra pera a dita cidade, disse que não.

Perguntada se dera a entender a alguma pessoa que a sua sentença não dizia que ella pintara as chagas ou dera rezões algumas pera mostrar a causa per que as não tinha, respondeu que nunca tal dissera nem dera a entender.

Perguntada, disse que o padre frei Domingos da Cruz, da ordem de São Domingos de Santarém, confessou a ela declarante duas vezes na dita quinta, com licença do padre provincial, a qual lhe disse João de Saldanha que tinha pera isso.

Perguntada, disse que não dera dinheiro nem peças a pessoa alguma, somente hum retavolo deu a Dona Lourença e algumas cousas pequenas às suas molheres; e ao dito frei Domingos deu duas moedas d’ouro de dobrões que lhe vierão no caixão.

Perguntada se no que tem confessado de suas culpas ouve comunicação alguma com alguma pessoa ou pessoas, porque não he de crer que o que tem dito e feito deixasse de o comunicar com alguma pessoa, portanto amoestão que diga a verdade pera salvação de sua alma e seu bom despacho. Disse que nesta matéria não tem que dizer, porque a verdade he que nunca comunicou as ditas cousas com pessoa alguma, nem lho deu a entender.

Perguntada se alguma ora lhe apareceo algum demonio ou o disse alguma pessoa que lhe aparecera, respondeu que lembrada está dize-lo, mas não se acorda a que pessoa e que isto era fingido como o mais que confessou.

Perguntada, ya que diz que dizia que lhe aparecera o demonio, se teve alguma comunicação com ele ou lhe fizera alguma promessa ou lhe dera membro algum ou tivera algum pacto com ele, respondeo que nem lhe aparecera nem tivera comunicação com ele, e o que disse foi fingidamente. E que por ora não he lembrada de outra cousa e de tudo perde [sic] perdão e misericórdia.

E al não disse; e assinou comigo. E lhe foi mandado ter segredo no caso, sob cargo do juramento que recebeo.

Antonio Dias Cardoso - Maria da Visitação

E logo in continenti foi chamada Felipa do Espirito Santo, prioresa deste convento; e sendo presente  ante mym, mandei à dita Maria da Visitação que comprisse inteiramente o que lhe esta mandado em sua sentença, sob pena de ser castigada rigurosamente; e à dita prioresa, da parte de Sua Alteza e sob pena de excomunhão e de privação de seu cargo, que lhe fizesse comprir a dita penitencia, assi e da maneira que se declara na dita sentença. E de tudo se fez este termo, que eu assinei com as ditas prioresa e Maria da Visitação, as quaes prometerão de assi o comprir .

a) Antonio Dias Cardoso

Soror Filipa do Spirito Santo, prioresa

Maria da Visitação

Informação de Maria da Visitação que se tirou em Abrantes

FELIPA DO ESPIRITO SANTO, prioresa do mosteiro de Nossa Senhora da Graça das religiosas da ordem de São Domingos da vila de Abrantes, cristã-velha, de idade que disse ser de cincoenta e oito anos pouco mais ou menos, e pera em todo dizer verdade lhe foi dado juramento dos Santos Evangelhos, em que pos sua mão, e prometeo dizer verdade.

Perguntada se despois de ser recolhida Maria da Visitação, prioresa que foi do mosteiro da Anunciada da cidade de Lisboa, neste convento de Nossa Senhora da Graça, está sempre recolhida na cela que lhe foi assinada por cárcere e guarda inteiramente a reclusão nela, estando sempre encerrada sem dela sair mais que pera o choro à missa do dia e pera o refeitório às quartas e sextas-feiras, disse que ha dita Maria da Visitação guarda inteiramente o que lhe foi mandado acerca do contheudo na pergunta, e somente vai ao choro a missa e ao refeitório às quartas e sextas, e antes que se recolha no dormitorio de noite se vai encomendar a Deos no choro com as mais religiosas por estar o choro defronte do dito dormitorio.

Perguntada se a dita Maria da Visitação fala com mais religiosas das que lhe estão nomeadas pelo provincial e por ela testemunha, e que pessoas são estas e quantas e de qualidade e exemplo, disse que à dita Maria da Visitação foram assinadas pera falarem com ela as pessoas seguintes: sorores Inés de Deos, suprioresa, Caterina da Cruz, rodeira, Maria de São João, mestra de noviças, Maria do Salvador, porteira, Maria da Resurreiçào, Aldonça de Jesus, Maria do Espirito Sancto, Maria de Jesus, porteira, Gracia da Trindade; as quaes oito [s/c]10 religiosas forão assignadas à dita Maria da Visitação por ela testemunha, conforme ao poder que lhe foi dado pera isso; e as ditas religiosas somente tratam e falão quando he necessário com a dita Maria [da] Visitação, posto que quando acontece alguma das ditas pessoas estarem doentes ou ocupadas ela testemunha tornou a dizer que ela testemunha Lwcl cumpre e faz cumprir inteiramente o sobredito; mas que algumas vezes acha algumas outras religiosas às escondidas falando com a dita Maria da Visitação, as quaes se escondem dela testemunha por lhe ter mandado o contrario, e que entende que as ditas religiosas lhe falarião por a consolar, porque erào taes pessoas de que se podia crer toda a santidade e religião, e que as ditas religiosas que forão assignadas pera falarem com a dita Maria da Visitação são pessoas de muita idade e religião e principaes neste convento e de muito exemplo e virtude, e por serem taes as escolheo e assignou ela testemunha.

Perguntada, disse que a dita Maria da Visitação nunca foy nem vay à portaria nem locutorio, nem outros lugares da comunidade.

Perguntada se a dita Maria da Visitação jejua e se disciplina às quartas e sextas-feiras diante das religiosas no capitulo e se faz a entrada do refeitório as prostações como lhe esta mandado, disse que tudo faz a dita Maria da Visitação inteiramente, jejuando os ditos dias como lhe foi mandado a pão e agoa e que ela testemunha lhe daa a disciplina.

Perguntada, disse que a dita Maria da Visitação cumpre inteiramente a penitencia que lhe foi imposta e com muita paciência e humildade, como pessoa que esta arrependida de suas culpas, e de sua penitencia estão satisfeitas e edificadas todas as religiosas do dito convento vendo o modo como a cumpre.

Perguntada se a dita Maria da Visitação escreveo ou mandou recados per si ou per interpostas pessoas a outras pessoas de fora seculares ou religiosas, em especial a Brites Baptista, freira do mosteiro da Anunciada, ou a alguma outra freira do dito mosteiro ou da Madre de Deus, e se recebeo cartas ou recados das ditas pessoas ou sabe as matérias e substancia de que trataváo ou que recados erào, disse que não vio nem sabe que a dita Maria da Visitação escrevesse ou mandasse recado a alguma pessoa ou pessoas, religiosos nem seculares, nem recebesse deles recado algum por carta nem por palavra; e somente ouvio dizer a Maria do Espirito Santo, freira desta casa, que quando logo chegara do dito mosteiro a dita Maria da Visitação lhe dissera que do caminho da quinta de João de Saldanha escrevera huma carta à dita Brites Baptista.

Perguntada se sabe que a dita Maria da Visitação traz consigo nos peitos huns corporaes que trouxe da cidade de Lixboa ou lhos vio ou sabe pera que efeito os traz, ou lho perguntou ou ela lho disse, respondeu que ela testemunha não sabia disto cousa alguma, mas que averá mes e meo pouco mais ou menos que o provincial de São Domingos lhe escreveo que tinha por informação que a dita Maria da Visitação trazia consigo huns corporaes sagrados e hum evangelho de São João e era necessário pedir-lhos. E então se foi ela testemunha a cela da dita Maria da Visitação e lhe perguntou por isso dizendo que lhe desse os ditos corporaes, porque não lhos querendo dar a avia de buscar; ao que respondeu a dita Maria da Visitação que a buscasse; e ela testemunha apertou com ela desenganando a que se lhos não desse os havia de buscar. E então se foi a dita Maria da Visitação a huma caixa sua, que tinha na mesma casa, e tirou os ditos corporaes e os deu a ela testemunha dizendo que ela não era feiticeira, que os ditos corporaes lhe dera huma freira; e o evangelho trazia consigo, que também deu a ela testemunha, dizendo que o ouvera dos marianos, que o davão a muitas pessoas, ou lho dera hum castelhano com humas contas, o qual era hum livrinho pequenino em que estava escrito o evangelho de São João. E todo o sobredito entregou ela testemunha ao confessor deste convento, que se chama frey Manoel de Santa Maria, e não sabe o que lhe fez, nem ela testemunha perguntou a dita Maria da Visitação nem sabe pera que efeito trazia os ditos corporaes e evangelho, nem ela lho disse.

Perguntada se a dita Maria da Visitação tem alguns arrabatamentos ou raptos, e se se emleva quando lhe nomeão o nome de Jesus ou lhe falão no esposo, e se esta assi enlevada ‘te lhe mandarem por obediência que desperte e se sabe quem lhe isto mandasse, disse que nunca vio fazer a dita Maria da Visitação o contheudo na pergunta, nem sabe que ela o fizesse.

Perguntada se a dita Maria da Visitação daa outras mostras fingidas de santidade, como benzer ou por a mão sobre os doentes, ou lhes diz algumas palavras querendo dar a entender que tem santidade ou algum dom de Deos pera lhes dar saude, e se daa algumas peças suas como relíquias, disse que não sabe que a dita Maria da Visitação fizesse o sobredito, porque se o vira ou soubera logo o denunciara.

Perguntada, disse que a dita Maria da Visitação se trata no vestir e toucar e comer e dormir como as mais

freiras, somente não traz veo como lhe foi mandado, e sempre vai no derradeiro lugar das professas e se trata como pessoa que está fazendo sua penitencia.

E al não disse e do custume nada. E lhe foi mandado ter segredo no caso sob cargo do juramento que recebeo, e assinou comigo. E declarou que também deu licença a madre Francisca da Cruz pera falar com a dita Maria da Visitação.

a) Soror Filipa do Spirito Santo, prioresa - Antonio Dias Cardoso

SOROR INÊS DE DEUS, suprioresa do mosteiro de Nossa Senhora da Graça das religiosas da ordem de São Domingos da vila de Abrantes, cristã-velha, de idade que disse ser de cincoenta e dous anos pouco mais ou menos, testemunha jurada aos Santos Evangelhos, em que pos a mão e prometeo dizer verdade.

Perguntada se despois de ser recebida Maria da Visitação, prioresa que foy do mosteiro da Anunciada da Cidade de Lixboa, neste convento de Nossa Senhora da Graça, está sempre recolhida na cela que lhe foi assinada por  cárcere e guarda inteiramente a reclusão nela, estando sempre ençarrada sem dela sair mais que pera o choro à missa do dia e pera o refeitório às quartas e sextas-feiras, disse que tudo cumpre a dita Maria da Visitação inteiramente como lhe foi mandado em sua sentença, nem sabe nem vio que fizesse o contrario do contheudo na pergunta.

Perguntada, disse que per mandado do provincial da Ordem forão assignadas oito religiosas deste convento, afora ela testemunha e a prioresa, pera comunicarem, falarem e tratarem com a dita Maria da Visitação, as quaes são: Maria de São João, mestra de noviças, Maria da Resurreiçáo, Maria do Salvador, porteira, Aldonça de Jesus, Francisca da Cruz, Maria do Espirito Santo, Maria [aliás. Gracia] da Trindade, Maria de Jesus, porteira, e todas as ditas religiosas são pessoas de qualidade e idade e muito exemplo na religião, e com estas somente fala e comunica a dita Maria da Visitação; e que também falão algumas outras religiosas com a dita Maria da Visitação escondidamente contra vontade e mandado das preladas, e que nunca ha vio sair fora de sua cela pera ir à portaria, locutorio, nem outros lugares da comunidade.

Perguntada, disse que a dita Maria da Visitação sempre jejua a pão e agua e se disciplina às quartas e sextas- -feiras diante das religiosas no capitulo, onde faz as prostações que lhe foram mandadas; e sabe ela testemunha, por ver, que ela alem do sobredito toma outras disciplinas secretamente em penitencia de sua culpa.

Pergunta I sic], disse que a dita Maria da Visitação cumpre inteiramente sua penitencia com muita paciência e humildade e como pessoa que está arrependida de suas culpas, e disso estão satisfeitas todas as religiosas vendo o modo como pede perdão.

Perguntada, disse que não vio nem sabe que a dita Maria da Visitação mandasse recados per sy ou por inteipostas pessoas a alguma pessoa de fora secular ou religiosa, nem a freira alguma da Anunciada ou da Madre de Deus, nem recebesse recados das ditas pessoas; e somente lhe ouvio dizer que do caminho escrevera a huma sobrinha sua, freira da Anunciada, e a outra do mesmo mosteiro que se chama Brites Baptista.

Perguntada, disse que não sabe que a dita Maria da Visitação traga consigo corporaes, nem ouvio dizer que os tivesse, nem rio nem sabe que tivesse raptos alguns nem arrebatamentos, nem desse outras mostras de santidade fingidas como benzer ou por a mão sobre doentes, nem dissesse palavras em que desse a entender que tinha santidade nem dom algum de Deos pera dar saude, nem desse relíquias de cousas suas; e que em tudo se trata como as mais freiras no vestir, toucar, comer e dormir, somente não traz o veo; e está no ultimo lugar das professas e não está aos ofícios divinos, e somente vay à missa como lhe está mandado; e acabadas as matinas da mea noite vay rezar ao choro por algum espaço suas obrigações.

E al não disse. E declarou que também Caterina da Cruz, rodeira desta casa, fala com a dita Maria da Visitação. por mandado da prioresa, por ser molher antiga das principaes da casa. E do custume nada. E lhe foi mandado tivesse segredo no caso sob cargo do juramento que recebeo; e assinou comigo.

a) Antonio Dias Cardoso - Soror Ynes de Deus, soprioresa

Seguiam-se os depoimentos de mais oito freiras do mesmo convento, no mesmo estilo, os quais, para não alongar este artigo e por não diferirem sensivelmente dos anteriores, se omitem aqui.

IN: SILVA, Joaquim Candeias da – Memórias do convento abrantino de Nª Sr.ª da Graça história exemplar de soror Maria da Visitação, a freira que “fazia chagas. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 9. Nº 17 (2011), p. 3-16

lagarinho

Por SARA VALENTE - Aluna da Escola Superior de Gestão do Instituto Politécnico de Tomar

Os moinhos de água e as azenhas1 fazem o aproveitamento da energia fornecida pelos cursos de água e já eram conhecidos nos tempos dos romanos2. A sua difusão deu-se na Gália, no tempo de Carlos Magno, estendendo- -se depois a outras regiões da Europa. Esta técnica de fazer uso da energia hidráulica era o processo mais frequente na moagem de cereais e veio a aplicar-se depois no esmagamento da azeitona.

Na maior parte dos casos a água era conduzida artificialmente ao moinho, por meio de represas, mas era indispensável que a corrente de água fosse suficientemente forte para fazer girar a roda e elevar a água.

A robustez da construção, a sua maior ou menor simplicidade, varia de uns lugares para os outros e envolve uma grande despesa na manutenção do maquinismo. A roda hidráulica em ferro, tem vantagem em relação às de madeira, menos resistentes, e, se for pintada, pode aguentar-se anos sem necessitar de reparação.

O direito de usufruir de um curso de água foi o motivo que contribuiu para que muitos destes engenhos fossem de utilização comunitária, tal como acontecia na Idade Média.

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O Lagarinho é um lagar de azeite situado numa Herdade do mesmo nome. Foi mandado construir em fins do séc. XIX pelo Sr. Joaquim Grosso, familiar diretor do atual proprietário. A Herdade situa-se na povoação de Brunheirinho, freguesia de Bemposta, no concelho de Abrantes e tem cerca de 90 hectares.

O lagar fica num terreno de oliveiras e num plano mais baixo relativamente ao “casal”, no alto do declive, onde fica a casa de habitação do dono da propriedade, e, agora, casa de campo. Já há alguns anos que está descativado porque este processo de moagem da azeitona deixou de ser rentável. Funciona como armazém para guardar cestos e alfaias agrícolas utilizadas numa outra área da propriedade destinada à produção do pimento vermelho. O lagar é de construção retangular, de um só piso e de uma só divisão ampla, mas desnivelada cerca de um metro. Tem uma área de 90m2 e na parte superior tem uma porta alta por onde entrava a azeitona. O telhado é suportado por fortes traves em madeira. No exterior do lagar, acoplada à parede norte por meio de um veio ou eixo, sobressai a grande roda em ferro, com 3 m de diâmetro que é a peça fundamental neste lagar de energia hidráulica. Entre os dois aros da roda sucedem-se as penas ou pás, em espaços regulares, sobre as quais cai a água.

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Da ribeira que ainda hoje corre na propriedade, desviava-se água, por meio de uma comporta, para um açude, a qual, depois, corria por uma levada de caleira descoberta, até à grande roda, fazendo-a girar.

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A atividade de um moinho baseia-se na força propulsora da água impelida contra as pás (penas) da roda, fazendo-a girar. Este movimento giratório é comunicado através de um veio horizontal que vai até ao interior do lagar, pondo em movimento a “cremalheira” (duas rodas dentadas ou carretos), uma maior e outra menor que, engrenando uma na outra, imprimem movimento a uma terceira ligada ao veio vertical, que fica por baixo do moinho, provocando a rotação das enormes galgas. Esta rotação pode ser interrompida, quando necessário, por uma alavanca (embraiagem).

A massa de azeitona saía por uma pequena porta da “vasa” para os chamados “carros”, que se deslocavam sobre carris comandados pela “agulha”. Nestes carros fazia-se o “enseiramento” sobrepondo as “seiras”, de esparto, sobre as quais ia cair a massa de azeitona, alternadamente, chegando a sobrepor-se entre 20 a 30 camadas.

As “seiras” tinham por vezes tendência a resvalar, pelo que o sistema sofreu uma inovação: as “seiras”, que antes eram inteiras, passaram a ter um buraco no meio para se adaptarem à agulha, no centro dos carros, onde eram colocadas. Seguidamente, os “carros”, já com a sua carga, entravam na prensa hidráulica, acionada por uma “bateria” (compressor), alimentada pela energia transportada por “correias “ligadas ao “tambor”, o qual é posto em movimento pela cremalheira. Esta bateria está munida de um manómetro indicativo da pressão atingida.

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Nesta “prensa de fuso” e após ser acionado o sistema hidráulico, as “seiras” eram comprimidas de modo a fazer a separação entre líquidos e sólidos, obtendo-se uma mistura de água e azeite, de cor negra, que corria para as “tarefas” na parte mais baixa do lagar e onde ia ser feita a “decantação”. A “decantação” é um processo demorado e consiste na separação da água e do azeite pela diferença de densidade. O bagaço, subproduto sólido que resulta da moagem da azeitona, era dado aos animais misturado com farelo.

Nas “tarefas”, o azeite, por ser menos denso, separa-se da água, ficando num nível superior, enquanto que a “água-russa” sai por uma torneira, na parte lateral e inferior da “tarefa”.

Para acelerar esta separação, sobretudo quando fazia frio, utilizava-se água muito quente. Outra peça indispensável num lagar era a “fornalha”, com a forma de uma salamandra gigante cheia de água aquecida por meio de lenha.

O azeite era depois armazenado em enormes talhas com a capacidade de muitos “alqueires” (cada alqueire de azeite são 10 litros). A água- -russa, que saía da tarefa, corria para um compartimento cavado no chão, a que o povo chamava de “ladrão”, porque depois de fechar o lagar, o lagareiro ainda aproveitava algum azeite que se sobrepunha à água.

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Para medir o azeite, existem os cântaros com uma asa em cima e outra em baixo para melhor se poder inclinar e despejar o azeite. Têm ainda a particularidade de possuir junto à boca um orifício quadrado indicativo da medida exata. Desse modo o comprador não é enganado na medição do azeite.

Temos ainda o funil, o púcaro-medida e o prato onde se colocava o púcaro de modo a não haver desperdício de azeite.

À volta da pequena mesa, sentavam-se os trabalhadores nos momentos de partilharem a “bucha”.

As talhas mais pequenas, em folha (latão), de 20,30,40 litros são usadas pelas pessoas para guardar o azeite em casa. Na aldeia, para ir à mesa, ainda há quem use a almotolia que, hoje em dia, é uma peça de artesanato.

Com o passar do tempo, os usos e costumes vão-se alterando e, por exigências comunitárias, as prensas hidráulicas muito vulgarizadas no século passado, estão agora extintas ou, na melhor das hipóteses, os lagares onde eram utilizados estes engenhos, estão agora transformados em locais de interesse turístico e museológico, normalmente associados ao chamado “Turismo Rural”. Este tipo de turismo permite o reviver de experiências do tempo dos nossos avós, tais como: “o varejar” ou “o ripar” da azeitona; o funcionamento do lagar; o fabrico do pão; a apanha da fruta; o fabrico artesanal do queijo e outras.

Tendo em vista o aspeto pedagógico e a população das nossas escolas, seria útil planear visitas guiadas a estas unidades museológicas (moinhos) para que pudessem compreender as vivências de um passado rural.

GLOSSSÁRIO DE TERMOS RELATIVOS A LAGARES HIDRÁULICOS

Bagaço - Resíduos das azeitonas depois de moídas e prensadas, isto é, após extração de boa parte do azeite e da água.

Bateria - Aparelho complexo, munido de manómetro, gerador da pressão que é transmitida à prensa.

Enseiramento - Conjunto das seiras utilizadas numa prensagem.

Galgas - As mós, em granito, do moinho.

Pás ou penas - Cada uma das asas do rodízio do moinho nas quais bate a água que o move.

Prensa - Aparelho onde se comprime a massa da azeitona moída colocada em seiras ou em capachos.

Roda hidráulica - Recebe e transforma a força viva do curso de água, transformando-a em energia.

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Seira - Capacho de couro com rebordo dobrado, onde é colocada a azeitona moída para sofrer a prensagem.

Tarefa - Depósito para recolha do azeite com água-russa e para processamento da decantação.

Tulha - Quantidade de azeitona que se coloca num local do lagar antes de entrar no moinho (o próprio local onde é colocada).

Vasa - Cubo de forma cónica onde se mói a azeitona por ação das mós.

BIBLIOGRAFIA

Dias, J.; Veiga, Oliveira e Galhano, E, “Sistemas primitivos da moagem em Portugal: Moinhos, azenhas e atafonas” ,Vol. II, CEEP (IAC), Porto, 1959.

Lello, Edgar e José, “Dicionário Lello Universal”, Vol. I e II, Lello e Irmão Editores, Porto, 1978.

Oliveira, Ernesto Veiga de, “Moinhos de água em Portugal”, Geographica 9, Lisboa, 1967.

Oliveira, Galhano e Pereira, “Tecnologia Tradicional Portuguesa - Sistemas de Moagem”, Lisboa (INIC), 1983.

Vasconcelos, Leite, “Etnografia Portuguesa”, Vol. VI, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1982.

WEBGRAFIA

www.cm-tomar.pt (Site do município - moinhos e lagares D’el Rei) www.euromills.net (Site sobre moinhos da Europa)

www.ttt.ipt.pt (Site Tomar Terra Templária sobre Lagares e Moinhos)

1 -“Geralmente, aos moinhos de água dá-se o nome de azenha ou azenha" Vasconcelos, Leite, «Etnografia Portuguesa» Vol VI

2 -“Tendo em conta a utilização corrente que os romanos fizeram dos moinhos de água, admite-se que também em Portugal a sua introdução e difusão tenha sido feita pelos romanos», «Os moinhos geralmente aparecem associados a povoações junto de vias que lhes asseguravam o fácil acesso» Oliveira, Galhano e Pereira, “Tecnologia Tradicional Portuguesa Sistemas de Moagem”, 1983

Imagem in “Aparelhos de elevar a água de Rega”, J. Dias e F Galhano

IN: VALENTE, Sara – Lagar Hidráulico do Lagarinho - Bemposta. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 8. Nº 15 (2010), p. 68-71

patrimonio

Jardim do Castelo. Estufa quente, desaparecida nos anos 70

POR CARLOS VIEIRA DIAS - Comerciante, membro do CEHLA

Património: Herança familiar. Conjunto dos bens familiares. Grande abundância. Riqueza e profusão de bens culturais de importância reconhecida num determinado lugar, região, país ou mesmo para a humanidade, que passam para um processo de arrolamento para que sejam protegidos e preservados. Património público: Conjunto de coisas pertencentes às pessoas jurídicas de direito público, ou bens públicos de uso comum do povo. (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa).

Desta vez, a seleção das fotografias apresentadas, em vez de usar como critério alguma unidade temática ou geográfica, assentou na apresentação de uma série de espaços abrantinos onde, fruto das transformações encetadas, hoje deparamos com realidades diferentes. Em alguns casos as diferenças são ligeiras e inevitáveis, noutras situações são marcantes e, quem sabe, deveriam ter-se evitado. Quando se propõem alterações urbanas, deve estar em primeiro lugar o valor do património em causa.

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Largo Barão da Batalha Casa do Capitão-Mor.

 

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Demolição da Casa do Capitão-Mor, no final dos anos 50

 

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Estação elevatória de água para abastecimento de Abrantes, inaugurada em 1891 e desaparecida em 2009.

 

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Estação elevatória, já ampliada, nos anos 80 do século XX.

 

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Largo/adro de S. João, em 1943.

 

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Nevão no Rossio, em janeiro de 1941. Este espaço, ajardinado na década de 40, passou a designar-se, por deliberação municipal de 17 de outubro de 1910, Jardim da República.

 

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Casa desaparecida, nos anos 80, na confluência da Rua da Barca com a Rua D. Nuno Alvares Pereira.

 

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Encosta poente de Abrantes, quase sem ocupação urbana, no final dos anos 60.

IN: DIAS, Carlos Vieira – Património: espaços que o tempo mudou. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 7. Nº 14 (2009), p. 40-44

transportes

Camioneta de transporte de mercadorias, dos armazéns comerciais Mena & Pinto, nas primeiras décadas do séc. XX. em Alferrarede.

 

Por CARLOS VIEIRA DIAS - Comerciante, membro do CEHLA.

Segundo Paul Class, no prefácio que faz à obra 5000anos de transportes, de Nelson Lima, os transportes assumiram primordial importância. Contudo, não o sentimos. Na pressa de nos levantarmos de manhã para enfrentarmos uma nova jornada de trabalho raros são os nossos pensamentos sobre os transportes.

Aliás, os meios de transporte - sejam ele o automóvel, o autocarro, o avião ou a simples bicicleta - ao fazerem hoje parte integrante da nossa sociedade, acabam por naturalmente passarem despercebidos. Habituamo-nos de tal maneira a viver com eles que nem reparamos como são importantes e indispensáveis no nosso dia-a-dia.

No entanto, o desenvolvimento que a nossa sociedade atingiu ficou a dever-se muito aos meios de transporte. A permuta de bens, as trocas comerciais, a emigração, o turismo e as simples viagens quotidianas casa - emprego - casa, contribuindo para acelerar o progresso económico e social, só têm sido possíveis através de meios de transporte cada vez mais aperfeiçoados e rápidos.

Nas fotografias que apresentamos, é possível constatar alguns momentos, em Abrantes e arredores, em que se fixaram imagens que falam por si, e que pusemos a falar, respeitantes à evolução dos transportes no último século. As transformações foram significativas e os seguintes elementos que recolhemos na Cronologia do Século XX, de Eduardo Campos, são prova disso mesmo:

- Em fevereiro de 1930, existiam em Abrantes 15 motas e 173 viaturas automóveis;

- No dia 5 de junho de 1935, foram aprovadas posturas reguladoras da velocidade, que estabeleciam 15 km/h como velocidade máxima no interior da cidade e 25 km/h nas zonas urbanizadas fora da cidade;

- Em janeiro de 1951, foi fixado em 41 o número de automóveis ligeiros de aluguer para transportar passageiros, em Abrantes.

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Familiares de Solano de Abreu, junto a um dos primeiros automóveis de Abrantes nas primeiras décadas do século XX em Vale de Rouban.

 

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Procissão, nos anos 40 no Largo Avelar Machado onde podemos observar estacionados vários modelos de automóveis ligeiros

 

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Varino - embarcação de carga que ate aos anos 40 efetuava grande parte do transporte de mercadorias entre Abrantes e Lisboa e vice-versa.

 

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O carro de mão não sendo um meio de transporte funcionava como um importante apoio no transporte de mercadorias Este modelo em madeira com roda de ferro em meados do séc. XX no Alto de Santo António em Abrantes está a servir de brinquedo para entreter as crianças.

 

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Camionetas de instrução de condução, junto ao Mercado Diário, onde atualmente se localiza o Edifício São João.

 

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Praça de táxis, em frente a casa do Capitão-Mor, nos anos 50

 

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Cortejo de oferendas, no Largo da Misericórdia em que um veículo de tração animal é seguido de um veículo automóvel de mercadorias Ate aos anos 50/60 estes cortejos eram comuns, entregando bens de primeira necessidade a Santa Casa da Misericórdia.

 

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Automóvel ligeiro e, ao fundo, camioneta de mercadorias em reparação na “Auto Garagem", onde atualmente se vira para a Tapada do Chafariz, nos anos 50.

 

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Automóveis ligeiros junto ao Hotel de Turismo, por alturas da sua inauguração, que aconteceu em 1954.

 

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As pequenas embarcações de pesca, no Tejo, ao fim de semana transformavam-se em meios de transporte de passeio e recreio.

 

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Rua do Comércio, em Alferrarede nos anos 60, em que é possível verificar o contraste de trânsito automóvel face aos nossos dias A bicicleta em Alferrarede assumiu-se desde cedo como um importante meio de transporte.

 

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Fernando Aparício e esposa, nos anos 50, junto ao seu automóvel. Este indivíduo foi o autor da maioria destas fotografias e de muitas outras que temos publicado na Zahara.

  

IN: DIAS, Carlos Vieira – Flashes de Transportes em Abrantes. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 8. Nº 15 (2010), p. 21-27

domingo

POR NUNO CAROLA - Natural de Alvega e interessado pela cultura e História locais.

Isto assim já está bom - sentenciava minha mãe enquanto atava uma fita que sobrara do Natal ao exíguo cesto de verga, onde uma gorda e anafada galinha de pescoço pelado se debatia nervosamente. O Domingo do Bom Pastor era, para as crianças, um dia único. Apresentar, ao Senhor Prior, com toda a solenidade que nisso víamos, uma oferta lá de casa, em nome de toda a família. Os cinquenta metros que distavam até à Igreja pareciam quilómetros, ao transportar tão pesada carga para os 7 anos.

O primeiro encontro era à porta da Igreja, onde uns e outros avaliavam de soslaio a importância das oferendas de cada um. Já no banco da primeira fila, esgrimiam-se argumentos sobre as vantagens de um casal de rolas sobre uma garnizé, e ajuizava-se da superfluidade de um cesto de fruta. A vontade de superar qualquer outra oferta era, só por si, embaladora. E, de repente, lá estávamos todos em pé, o coro a entoar “Bendito o que vem em nome do Senhor”, o Senhor Prior a contornar, solene, o altar, e as galinhas, patos, pombos e coelhos a agitarem-se com tamanha gritaria.

A liturgia decorria breve, antevendo já o pároco a zoológica azáfama que caracterizava aquele Domingo. O sermão era apressado por um cacarejar aqui, umas risadas ali, umas batatas a rolarem pelo chão, e todo um burburinho que se ia gerando em torno de grandes e pequenas caixas com furos, contendo sabe-se lá que espécimes melhores ou piores que os nossos.

E eis que, finalmente, chegava o ofertório. Após depositarmos o minguo óbulo que os pais nos davam propositadamente para o efeito, cada qual seguia agora para o corredor central da Matriz, formando generosa procissão. E era aqui, precisamente no momento alto da afirmação da nossa virilidade social, que, subitamente, encolhíamos até ficarmos mais pequeninos do que quando havíamos entrado. Das povoações mais rurais vinham coelhos de vários quilos, pombos que pareciam frangos, patos mudos lustrosos, gansos gordos, cabazes gigantescos que pareciam saídos de pinturas maneiristas de tão coloridos e pródigos, um casal de garnizés de uma tal matização de cores que embevecia, frascos de mel, garrafões de vinho caseiro, garrafinhas de licores, vinhos finos, champanhes, whiskies, envelopes com dinheiro, até ramos de flores caras e caixinhas de bombons. No final, e quando o pedestal do altar mais parecia uma banca de mercado, irrompem duas mocetonas solteironas, todas figuronas, a segurar uma frágil cesta de vime onde um borrego vinha ajujado nas quatro patas. E de tal maneira disposto que se lhe podia, claramente, avaliar o portentoso perfil e respetivo volume. Ao gesto apressador do venerando sacerdote, foi o cordeiro levado para a sacristia, não fosse dar-lhe para balir nos Santos. E, siderados assim, com a grandiosidade de tão poderoso trunfo, empederniam-se-nos os membros, pelo que já nem acompanhávamos a assembleia no erguer e no ajoelhar. À comunhão, nem a hóstia se desfazia como normalmente, mas era aqui que começava a galhofa.

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Antigo Pároco de Alvega (Pe. João dos Santos), entre 1906 e 1950.

Indiferentes a preces, invitatórios e hossanas, as galinhas sentiam-se desconfortáveis assim amarradas, e os coelhos sufocavam nas caixas de sapatos que lhes serviam de jaula. Com a berraria do cântico elevada a decibéis consideráveis, e um ajuntamento de pessoas mesmo ali, não tardava um coelho passear-se pela alcatifa da capela-mor, ou uma garnizé dar um voão para trás da cadeira do Senhor Padre. E lá vinha, diligente, uma zeladora mais atenta, rompendo a procissão, a apanhar o fugitivo. O destino, já se sabia, era uma das caixas dos arcazes da sacristia, onde cabia de tudo. Tínhamos de morder a mão para não rir, e baixar a cabeça para afugentar a imagem tão insólita. Mas eis que rebentávamos... volvia a boa senhora da sua tarefa, e um borracho, amorosamente amarrado com o seu par numa cestinha de doces de amêndoa, libertara o organismo, contra o qual não deveria forçar. E assim, a alcatifa vermelhinha da capela-mor apresentava, agora, um elemento perturbador na sua cor uniforme. Nesta altura, já a maior parte de nós puxava a gola da camisola para o cimo da cabeça afim de rir à vontade, sem ofender o olhar cândido dos santos que dos nichos dos altares liam as nossas mentes.  Ide em paz, e que o Senhor vos Acompanhe. - Graças a Deus! - Missa acabada, mas nem por isso missão cumprida. A criada do Senhor Prior encabeçava uma pequena hoste de voluntárias que receberia e acomodaria, sob as suas ordens, todo aquele maná, na Casa Paroquial. À porta desta extensa fila se formava, meticulosamente analisada pelo Pastor, que, do princípio ao fim, agradecia e despedia com uma bênção das mãos ossudas sobre as nossas cabeças.

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Lá dentro, galinhas, patos, coelhos e garnizés eram lançados à uma no galinheiro, enquanto os restantes mantimentos eram devidamente separados e arrumados. Na entrada, uma senhora menos capaz de esforços, e mais diminuída de vista, mas nem por isso de vontade de colocar à disposição do Pastor daquele rebanho os seus humildes préstimos, despedia os ofertantes com uma mão-cheia de rebuçados. E nós, já despidos da pele de representantes de família, retomávamos o fartar vilanagem do dia-a-dia: após receber os respetivos rebuçados, cada um de nós andava dois ou três lugares para trás e intrometia-se na fila, retomando lugar entre os que esperavam, no intuito de passar despercebido perante a inocente distribuidora de rebuçados. E lá vinham a segunda, terceira, e às vezes quarta, mão-cheia de rebuçados, que, todas juntas, constituíam o quinhão com que “mitigávamos a ofensa do borrego.”

IN: CAROLA, Nuno – O Domingo do Bom Pastor. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 7. Nº 13 (2009), p. 64-65

Destaques

Augusto de Oliveira Mendes

Literatura em geral

Nasceu no Tramagal em 1959 e faleceu no dia 24 de dezembro de 2000. Frequentou o Instituto Superior de Línguas e Administração, em Lisboa, no Curso de Línguas e Turismo e, concluiu Le DELF (Diplôme d’Etudes en Langue Française) et le DALF (Diplôme Approfondi en Langue Française) na Alliance Française.

João Nuno Alçada

Literatura em geral

Biografia: Nasceu em 1943, na Covilhã, mas é de uma família ligada a Abrantes desde há muito Bibliografia:

João Manuel Esteves Pereira

Contabilidade

Nasceu em Rio de Moinhos a 6 de março de 1929 e faleceu a 28 de setembro de 2009 Na sua vida profissional passou por muitas funções, tendo sido sobretudo professor reconhecido a nível nacional, mas também técnico oficial de contas e revisor de contas de muitas empresas.

João Sebastião

Educação

Nasceu em Mouriscas A sua formação inicial foi o Curso do Magistério Primário, tendo sido professor do ensino primário entre 1980 e 1987

Júlio Amaro

Artes plásticas

Júlio Amaro(1931 – 2007) S/ título, óleo s/ tela,1991,38,5 x 55 cm Júlio Amaro nasceu na Abrançalha, Abrantes, em 1931, e faz a sua primeira exposição com 16 anos no Instituto Padre Oliveira

Mário Semedo

Literatura em geral

Nasceu em Abrantes em 1956 e faleceu em 2013. Teve uma carreira militar, dedicou-se ao jornalismo e à educação, tendo lecionado matemática durante vários anos.